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Transporte Sentimental



Quarta-feira, 29.04.15

a última aguardente do tio nascimento

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Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras. Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi, em novo, ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças, estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalharem ainda mais para irem entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da Serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto morreu na grande cidade um dia antes de fazer a grande intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida caso corresse bem. Mas não correu. Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e, mais perto, a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade. --

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por José do Carmo Francisco às 17:04


1 comentário

De Joaquim Nascimento a 29.04.2015 às 21:34

Não, não sou o seu tio, embora tenha o mesmo apelido, nem tenho esse maravilhoso bagaço, nem na garrafa, nem a escorrer pela garganta abaixo, tão de mansinho que nem se dá por ele, só se sente quando o néctar decidir que são horas de subir à cabeça, no percurso inverso que é o seu grande Destino.
Estou a sentir-lhe o cheiro, o bouquet como os entendidos dizem - imagine-o quem não puder experimentá-lo, é o meu caso - oxalá você tenha um balão adequado e para que todo o cheiro se concentre no seu bojo, o pouco que lhe resta da herança de seu tio, não a beba, snife-a, perfume-se com ele e, deste modo fica um rasto que pode durar anos. Produzir e poupar, como dizia o outro e quanto menos produzirmos mais temos que poupar, isto digo eu.
Nos Pereiros, em casa dos meus primos, ainda sobra uma escassa pinga de bagaço que o meu primo Francisco, como o seu tio Nascimento, ainda fez, está guardado religiosamente para o Natal e para a Páscoa, são duas vezes por ano, mas ainda assim são demais e o bagaço uma festa destas vai-se-nos e a festa ficará menos festiva, como há.de acontecer consigo e com o seu. Nós, em alguns dias de sorte, ainda bebemos um bagaço decente, é o da tia Elvira, mãe do Bernardo que o vai partilhando connosco, obrigado a ela, obrigado a ele. Eu aqui por baixo também bebo um bagaço decente, é de medronho e dele garanto a legitimidade, garanto eu e garante Lúcia Guerreiro que faz cozinha alentejana aqui no coração de Albufeira em "Alentejana Marafada" e que perde alguns domingos à procura do medronho por tudo o que é serra algarvia que são só duas, a de Monchique e a do Mu ou Caldeirão, Bebe-se tão bem, sabe-me ao medronho dos anos 60 que eu descobri em Tavira e de que, desde logo, gostei, bebia-se muito na tropa, bebia-se muito no mar, bebia-se muito em terra, bebia-se muito na guerra, mas eu ainda qui estou.
E de medronho me basta mesmo que tenham que mo vender disfarçado de outro álcool, parece que a asae embirra com medronho de Lúcia, e da serra algarvia, continuemos pois no seu bagaço de seu tio Nascimento, antes que alguém se chibe do meu, uma garrafa de bagaço é uma boa herança e então, se fosse uma por mês, era um banco de bagaço, oxalá que você saiba poupá-lo, Poeta, quando não chegar para o beber, cheire-o que lhe vai durar muito mais.
Boa noite Poeta, à sua saúde e à nossa, oxalá que o Bernardo tenha trazido reforço que,na segunda, lá estamos para o que der e vier.
Um abraço, este escrito fez-me sede e lá vou eu sacrificar um dedal de Antiqua, porque não tenho a sorte de ter aqui á mão a aguardente do meu primo, menos ainda a de seu tio, com que acabamos por evocar a memória de tio e primo, a memória que lhes prolonga a vida, nessa coisa tão simples e tão complexa, na pequena dose de aguardente branca, o bagaço dos nossos tios, o bagaço de nossos primos, o bagaço e cada dia nos dias de hoje. E não dizem que Pessoa, aqui que ninguém nos ouve, em fragrante de litro?! Bons tempos.
29.04.2015

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