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Transporte Sentimental



Sexta-feira, 28.10.16

crónica ou poema em prosa para joão moreira

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Estamos em Vila Nova de São Pedro, concelho da Azambuja. Há um homem antigo que vem do fundo do tempo e caminha com quatro moínhos no olhar. Aos moínhos do Belchior e do Valério juntam-se o do Narciso e do Faustino. Hoje os moínhos já não transformam grão em farinha com a qual mulheres antigas vão encher de água, fermento e sal os grandes alguidares de barro vidrado. Depois do forno já não virá a festa da mesa da qual um qualquer bocado que possa cair será tirado do chão com um beijo. Era esse beijo o respeito à vida que o próprio pão representava. Há um homem que vem do tempo antigo quando a riqueza se media (tal como na Bíblia) pelo número de animais, de criados e de filhos que cada homem tinha na Charneca, na Lezíria ou no Bairro. Sem esquecer as árvores que de nove em nove anos despiam a epiderme para dar origem a rolhas ou a mosaicos nas paredes dos estúdios de rádio. Tudo no tempo antigo era justo, intocado, circular e repetido. Mas não era; apenas parecida. Basta ver: os moínhos trazidos no olhar cansado deste homem antigo são hoje apenas uma memória. Há um homem antigo que vem do tempo em que os campinos levavam no avio da semana um pão para oito dias. Numa pequena fogueira de gravetos, colocavam uma panela em cima de quatro pedras. Com paciência cortavam com a navalha dentes de alho sobre um pingo de azeite ao lado do miolo do pão duro e duas lascas de bacalhau da Islândia. Essa massa quente saltava depois para o interior do pão, aquecendo assim a côdea dura já com uma semana de rigidez. Era assim que junto a um valado se cozinhava um prato que é hoje apreciado nos restaurantes da moda onde já não há cozinheiros mas apenas chefs. Nesse tempo os campinos não usavam telemóvel nem jeep. Apenas um cavalo de carne e osso que nada tem a ver com os cavalos-vapor das máquinas e dos motores. Há um homem antigo que vem do fundo do tempo e tem quatro moínhos no olhar. --

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por José do Carmo Francisco às 10:52

Sexta-feira, 28.10.16

«pirilampos da alma » de antónio moreira pinto carvalho (paulinas editora)

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A página 7 deste livro abre com a palavra «Introdução» em vez de «Prefácio» ou «Prólogo». Questão de escolha. Nela o bispo de Bragança-Miranda, D. José Manuel Garcia Cordeiro, refere o autor deste livro como «diácono» embora na página 8 já lhe chame «autor». Não é a mesma coisa pois o diácono tem funções específicas dentro das quatro paredes da igreja, sendo um mediador entre o Povo de Deus e o próprio Deus no mistério e no ministério do altar. Autor é o que cria beleza e ritmo com as palavras que valem menos de que «pétalas pisadas depois de um baile» – Maiakowsky o escreveu um dia. Outro aspecto é a contracapa onde um excerto da «Introdução» de D. José Manuel Garcia Cordeiro aparece em forma de poema e com o nome «Garcia» ignorado, desaparecido e apagado. Aqui como em tudo na vida só posso ser o que sou e dar o que tenho. Ninguém pode ser quem não é nem dar o que não tem. Aprendi em 1978 no velho «Diário Popular» com Jacinto Baptista que todo o leitor merece a indicação do ponto de partida de cada livro cuja nota de leitura vamos elaborar e assinar. Ora o ponto de partida deste «Pirilampos da alma» é a relação de causa/efeito entre os textos bíblicos, as encíclicas, os ensaios de teologia ou o catecismo da Igreja Católica e os desenhos que são quatro (páginas 9-35-69-107) para 49 poemas e 52 citações ao todo. Para quem gosta de fazer contas, convém explicar que o desenho da página 9 não tem o correspondente texto de citação, antes se segue ao prefácio de D. José Manuel Garcia Cordeiro referido no livro como «Introdução». O ponto de partida é, pois, a causa e o efeito entre a citação e a dissertação. De um lado a Bíblia, as encíclicas, o catecismo da Igreja Católica e os ensaios de teologia; do outro lado os poemas que são 48 sonetos e apenas um poema em prosa. O ponto de chegada é o poema da página 109: «As palavras que escrevo e que digo / pirilampos da alma que acendi / nos momentos mais íntimos contigo / são migalhas do amor que recebi//Foi com tua Palavra, ó Pai amigo / que quiseste nas minhas provocar / o encontro do pobre sem abrigo / com o pão que Tu negas em não dar//Pequeninos luzeiros que incendeiam / os silêncios da minha solidão / são sementes de fé que em mãos semeiam / esperanças lavradas de oração / e o chão o caminho presenteiam / p´ra rasgar horizontes de paixão!» Não é possível resumir em breves linhas o conteúdo e a forma de 49 poemas. Fiquemos pela indicação de dois aspectos: o discurso do autor e a geografia. O autor («Sem Ti não sei quem sou neste deserto») utiliza um método («Escrevo-te esta carta que o meu peito /está pedindo urgente remissão») com uma ideia formada («Não me deixes perdido, fustigado / pelos ventos desérticos da vida») pois só junto ao Senhor o poeta se sente encontrado: «É contigo que eu quero caminhar / e em Ti me encontrar se me perder». A geografia pode ficar no intervalo entre o mar e a serra. O mar tem a ver com o Turcifal («Mas agora, corridos tantos passos / sem lhe ver o calçado, nem os traços /encontrei-o nos ares do Turcifal») e a serra tem a ver com o Monte Tabor: «Andar sempre contigo ó Senhor / é ver-Te em cada rosto, em cada ser / é ter no coração do meu viver / a vida transformada no Tabor». O que torna o poeta próximo do crente é o facto de o poema ser uma forma de oração: em ambos se ligam de novo dois mundos separados pela distância, pela noite e pela morte. Em ambos os casos (poema e oração) são usadas as palavras. Ora a palavra é uma graça mas também uma responsabilidade. Na página 85 do livro «Poemas para rezar» de Michel Quoist lá surge a advertência: «Tomei a palavra, Senhor, e estou vermelho de raiva / De raiva sim pois agitei-me, gastei-me, esbanjei voz e gesto / Meti tudo o que sou em frases e palavras / E receio que o essencial não tenha sido dito / Pois o essencial, Senhor, não está ao meu alcance / E para contê-lo as palavras são estreitas de mais. / Tomei a palavra Senhor e estou inquieto / Tenho medo de falar porque é grave / É grave incomodar os outros, fazê-los sair de casa, pô-los de pé, imóveis à soleira da porta / É grave prendê-los longos minutos, mãos estendidas, coração tenso implorando uma luz ou um bocadinho de coragem para viver ou para agir / Será que não vou despedi-los, Senhor, de mãos vazias?» Por sua vez o Padre António Rego no seu livro «Eterno agora» tem um poema na página 148 intitulado «Ver bem» que conclui deste modo: «quantas vezes a mim Te dirigiste / e quantas vezes não mereci o Teu olhar/ ou o apelo sedutor da Tua apalavra // Tenho receio de esbanjar os Teus dons / e esquecer a Tua Ressurreição // Faz-me Senhor atento / ao teu afecto / às dádivas que distribuis / e às maravilhas que nos tocam // E desculpa por não saber ver-Te melhor / nos sinais do nosso tempo / quando fecho os olhos à Tua passagem / para só ver as misérias do mundo. //A Humanidade reflecte os Teus dons //Faz-nos ver isso, Senhor.» No livro «Marcha triunfal» de Júlio Dantas o recém-regressado Antão de Noronha pergunta a diversas pessoas na igreja de Santana onde estava sepultado Luís de Camões. Ninguém sabia. Uns respondiam «Quem é?» Outros: «Não sou da freguesia» Outros: «Não ouvi falar». Quando saiu da igreja Antão de Noronha viu terra revolvida de fresco mas nem uma lousa nem uma cruz.» É este o risco que corre quem pega na palavra num país de analfabetos, um país que conhece Bocage pelas anedotas e Bulhão Pato pelas amêijoas. Se Camões, o grande carpinteiro das palavras, entrou no esquecimento meses depois da morte civil muito pouco podem esperar os modestos carpinteiros, os de oficina humilde, pequena e mal iluminada. Para terminar nada como lembrar a solene advertência de São Mateus: «por toda a palavra ociosa que disserem, hão-de os homens prestar contas no Dia do Juízo, porquanto pelas tuas palavras serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado.» --

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por José do Carmo Francisco às 08:20


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