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Transporte Sentimental



Sábado, 19.09.15

domingos rebelo - a minha memória não deveria ter falhado

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Ainda a propósito do recente texto «O enterro do anjinho e o menino do Afonsoeiro», surgiu-me uma coisa que só acontece a quem escreve, como eu, em estado geral de paixão. Escrevo só, comigo mesmo e sempre nas minhas circunstâncias. Não tenho um gabinete de gente amiga a lembrar-me as falhas e as omissões no momento de escrever. Ao recordar os quadros que entraram na minha vida e dela nunca mais saíram, esqueci-me de referir «Os emigrantes» de Domingo Rebelo. A minha costela de açoriano está ausente no meu nome civil mas Pedro da Silveira garantiu-me ser eu descendente de um Almeida das Flores que veio para o Continente no Batalhão Liberal e desembarcou no Mindelo. Mais tarde passou à disponibilidade e casou em Alcobaça que é perto de Santa Catarina onde nasci em 1951.Não é por acaso que tenho amigos nas diversas Ilhas dos Açores, colaborei em vários jornais desde 1982 (comecei em «A União») e continuo hoje com uma crónica semanal na RDP Açores. O Pedro da Silveira tinha dentro dele toda a memória do Mundo e só ele me poderia garantir uma coisa que está em oposição formal ao meu nome (digamos) oficial. Ele sabia que o meu nome na cédula pessoal deveria ser «José do Carmo Almeida Francisco» mas a alegria entre os vários homens da família e arredores (meu avô era o sacristão, o pároco morava na mesma rua, o delegado do Conservador do Registo Civil também, enfim…) a alegria, essa transbordou do bacalhau assado, do azeite, do pão e das azeitonas para o vinho da adega que era ali mesmo ao lado de casa onde nasci e que hoje é uma ruína. O nome «Almeida» foi esquecido mas está sempre presente. O quadro «Os emigrantes» de Domingos Rebelo não foi referido no meu texto anterior mas faz parte daquilo que eu sou. Mesmo quando não parece. --

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por José do Carmo Francisco às 11:38

Sexta-feira, 18.09.15

«lei seca» de pedro mexia

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Na linha de antepassados ilustres, Pedro Mexia (n.1972) nestes «Diários 2009-2012» recupera a miscelânea literária tal como já fizeram antes Camilo Castelo Branco («Narcóticos»), Brito Camacho («Pó da estrada»), Irene Lisboa («Esta cidade!»), Ruben A. («Páginas»), Carlos de Oliveira («Aprendiz de feiticeiro») ou Fenando Venâncio («Último minuete em Lisboa») isto sem esquecer os «Tablóides» de José Rodrigues Miguéis no «Diário Popular». Em 1978 Jacinto Baptista, seu director, afirmou-me «O jornalista é o historiador de todos os dias». Julgo ser esse o sentido da intervenção de Pedro Mexia: juntar em livro o que há cem anos se chamava «sueltos». Os jornais foram substituídos pelos «blogs» mas a ideia mantém-se – recuperar do pó do esquecimento os textos que se julga poderem resistir ao tempo e passar à posteridade. As anotações breves partem do olhar sobre o autor («Já sei que de mim nada fica mas não acho a vida menos digna de ser vivida por causa disso»), o seu estado («celibatário é o homem que conseguiu não encontrar uma mulher») e o seu pessoal pessimismo («Ser pessimista é sobretudo cansativo. Todos os dias o mundo confirma a ideia que temos do mundo») mas o foco é a vida em sociedade: «O meu melhor leitor é aquele cavalheiro que um dia me disse: Não me interessa nada a sua vida mas gosto muito do que escreve». Pedro Mexia é um homem de palavras - «Leio num dicionário que «aceitação» é antónimo de «resistência». Talvez por isso tão pouca gente compreenda esta minha atitude que se podia definir como «uma resistência feita de aceitação» ou «uma aceitação feita de resistência». Como tal, não fica indiferente ao chamado «meio literário» e aos seus ridículos dramas numa espécie de Sporting-Benfica («Se lês Pessoa não leias Pascoaes») em que é tudo a fingir: «José Gomes Ferreira escreve no seu diário que Carlos de Oliveira lhe disse que Fernando Namora contou que Álvaro Salema ficou furioso com Ferreira de Castro porque este pediu ajuda a Augusto de Castro». Tudo isto tem a ver com o ficcionista argentino Fogwill: «A literatura não conta uma história, conta como se conta uma história». Pelo meio surge a história com António Lobo Antunes que, depois de autografar um livro («Para Pedro Mexia, porque gostei do seu livro»), numa entrevista a João Céu e Silva diz que não o conhece. Na miscelânea de 374 páginas fica demonstrado o eclectismo de Pedro Mexia que tanto se aventura na dissertação sobre Sófocles como pela revisitação a Kierkegaard. Ou ainda por um olhar sobre a fotografia: «as suas fotografias nunca mostram pessoas porque as pessoas entram nas fotos quando as vêem». Por mim gosto das citações seja da carta de Cesário Verde («Eu não sou nem bom nem generoso como tu julgas») ou de um poema de Raúl de Carvalho: «Vem (serenidade) e defende-me / da traição dos encontros». Um amigo contou-me que começou a ler este livro no Colégio Militar e só parou na Damaia. De Cima, claro. Este volume só pode ser lido em cima, de cima, acima. Porque embora pela sua natureza se integre na vulgaridade quotidiana, ele felizmente não faz parte dessa mesma vulgaridade. (Editora: Tinta-da-China, Capa: Vera Tavares) --

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por José do Carmo Francisco às 09:53

Quinta-feira, 17.09.15

«quando a bola não entra» de nelson nunes

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Com o subtítulo de «As histórias dos jogadores que não conheceram o sabor do sucesso» este livro junta nove depoimentos de jogadores de futebol que, como se diz vulgarmente, «passaram ao lado de uma grande carreira»: Edgar Marcelino, Fábio Marques, Vítor Afonso, Gonçalo Gonçalves, Marco Bicho, Rebelo, Pepa, Tininho e Vasco Varão. Numa breve nota pessoal poderei dizer que entrevistei Edgar Marcelino para o jornal «Sporting» algumas vezes e Pepa para o jornal «O Mirante» uma vez. Almeida Garrett escreveu em «Viagens na minha terra» (século XIX) que são precisos duzentos pobres para fazer um rico. Num certo sentido o que acontece no futebol português é muito parecido com a frase de Almeida Garrett: por cada jogador que triunfa há duzentos que ficam à porta da fama. E do proveito que essa fama implica. No meu livro «Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos» (Padrões Culturais) esta realidade está presente em poemas dedicados a jogadores como Afonso Martins, Ricardo Quaresma, Hugo Viana, Miguel Garcia, Carlos Martins, Hugo Pina, César Piedade, Fábio Paim e Emídio Rafael além de outros poemas publicados em Blogs sobre Paulo Teixeira e Fernando Ferreira, por exemplo. Os depoimentos valem por si e esta nota não substitui a leitura de cada uma deles mas há um sentimento geral que é o de Portugal ser um país de «ou 8 ou 80», um país ciclotímico e bipolar (ora eufórico ora deprimido) como explica Gonçalo Gonçalves: «tu numa semana estás bem e és o maior, noutra semana estás mal e és o pior. Desde os colegas até aos presidentes e à massa adepta, todos te criticam. Hoje digo-te uma coisa para te convencer a vir para a minha equipa e amanhã já é mentira. É não olhar a meios para atingir os fins. E quando não precisam de ti és lixo, és descartável. O futebol é muito mais um negócio do que um desporto.»O futebol português é um «mundo cão» onde algumas vezes também acontecem coisas bonitas com pessoas que valem a pena; diz Edgar Marcelino: «tanto o Eutrópio como o Mário Jorge fizeram questão que eu fosse para o clube. São poucas as pessoas que te dão a mão para ajudar sem te nada em troca e, por isso, estou-lhes eternamente grato.» Uma surpresa pode ser o humor que Pepa (a quem chamavam Chibanga) revela na página 200: «O Luís Campos dizia-me muitas vezes que eu ia ser o próximo treinador preto em Portugal e eu dizia, sim, mister mas também não há empresários pretos, nem árbitros pretos nem directores pretos, nem nada preto!» Algumas notas de pormenor não retiram interesse ao livro. Nas páginas 15 e 21 refere-se Alcochete em vez de Barroca de Alva, na página 129 refere-se o euro como moeda antiga, na página 144 a frase é «daqui não saio», na página 150 refere-se «o Belenenses» em vez de Os Belenenses, na página 159 Fernando Santos é referido com o arquitecto em vez de engenheiro, na página 170 refere-se 1.200 euros como equivalente a 600 contos quando é bem 3.000 euros, na página 195 Pepa é referido como escalabitano quando é de Torres Novas, na página 216 a palavra «discrepância» não refere em relação a quê. Na página 256 é referido um treinador do futebol juvenil do Sporting de nome Dominguez que eu não recordo entre 1988 e 2006 quando fui colaborador e redactor do jornal do Sporting. Pode ser falha minha. (Editora: Ideia Fixa, Prefácio: Fernando Santos, Capa: Rita Henriques) --

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por José do Carmo Francisco às 15:27

Quinta-feira, 17.09.15

museu francisco tavares proença júnior - quando iminente se transforma em eminente

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Foi preciso visitar o Museu Francisco Tavares Proença Júnior de Castelo Branco no passado dia 13-9-2015 (Domingo à tarde) para perceber melhor o que me aconteceu no passado mês de Agosto no Entroncamento quando fui obrigado a pagar bilhete no Museu Ferroviário. A carteira profissional de jornalista de nada vale para eles. E nem está em causa o custo do bilhete (3 euros) mas sim a atitude. Copiando o código de excepções da Rede dos Museus do Centro, alguém do Entroncamento colocou assim o novo Museu Ferroviário na mesma linha. Jornalista ali só com «pré-aviso» e em reportagem. O Museu do Prado de Madrid e o Museu Marítimo de Greenwich em Londres (por exemplo) que recebem os jornalistas com cordialidade, elegância e simpatia, estão, pelos vistos, enganados, confundidos e errados. Em Castelo Branco, no Entroncamento e (imaginamos) em toda a rede de Museus dependentes da DRCC (talvez sigla de Direcção Regional da Cultura do Centro) é prática corrente não abrir as portas aos jornalistas. Por muito que isto nos custe até tem lógica porque estamos num país de analfabetos. Basta ver que num dos quadros da parede do Museu de Castelo Branco há uma tapeçaria sobre Sodoma e Gomorra. Ao lado um texto explicativo não assinado relembra a maldição divina anunciada sobre estas duas cidades e os seus habitantes que eram grandes pecadores. Estava iminente a concretização da ameaça de Deus mas no texto explicativo ao lado da tapeçaria escreveram «eminente». A troca de letras dá à palavra um sentido diferente e quase oposto tal como acontece em emigrantes e imigrantes. Mas as coisas aqui são como são. Em Portugal os analfabetos triunfam em toda a linha. Manda quem pode, obedece quem deve. E a vida continua porque a morte é certa. --

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por José do Carmo Francisco às 11:21

Quarta-feira, 16.09.15

«o enterro do anjinho» e o menino do afonsoeiro

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Todos nós temos ao longo da vida alguns quadros a óleo ou aguarelas que entram na nossa memória e dela já não podem sair. «O enterro do anjinho» de Bernardo Marques é um deles tal como «As ceifeiras» de Silva Porto, «O almoço do trolha» de Júlio Pomar ou «o Fado» de José Malhoa sem esquecer «As aparições» do mesmo. Quando eu vivia no Montijo entre 1957 e 1961 houve um motociclista que atropelou um menino no Afonsoeiro, ali à saída do Montijo. Foi um tempo de horror e só me lembro de se dizer na minha rua que o menino tinha ficado num frangalho. Tenho ideia que os gritos da mãe e das irmãs mais velhas (que são sempre pequenas mães) se ouviam na Rua do Norte e no Beco do Esteval. Era um menino como todos os meninos do Afonsoeiro e do Montijo. Via as fragatas do Tejo, pegavam-lhe ao colo para ver as largadas dos touros, adormecia antes da Queima do Batel no fim das Festas de São Pedro que abriam sempre com os gigantones e os cabeçudos que vinham de Ponte de Lima. O enterro desse menino do Afonsoeiro encheu o cemitério do Montijo, veio gente de longe, da Jardia, da Lançada, da Barra Cheia e do Alto Estanqueiro, a Rua do Norte tinha nessa tarde um movimento pouco habitual, a tristeza derramou-se pela calçada e pelos passeios até à Rua Sacadura Cabral, havia lágrimas grossas no rosto de muita gente e ele era apenas um menino mas morreu sem porquê no Afonsoeiro, atropelado por uma motorizada que andava sempre na estoira. Eu que também era um menino estive lá no cemitério do Montijo com a caldeirinha da água benta ao lado do senhor Padre Manuel; professor de Moral do Manuel Fernandes que vinha de Sarilhos Pequenos e foi mais tarde motivo de um poema no meu primeiro livro publicado com o título de «Iniciais», editado pela Moraes Editores. --

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por José do Carmo Francisco às 13:14

Sexta-feira, 11.09.15

«contos escolhidos» de cristino cortes

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Neste volume de 26 contos de Cristino Cortes (n.1953) 3 são inéditos, 10 foram publicados em revistas e jornais e os restantes 13 pertencem a dois livros publicados em 1998 e 2003. Os contos, todos eles, são narrativas de proveito e exemplo. Quem os povoa são gente de todos os dias («É tão difícil duas pessoas entenderem-se!») gente que pode perguntar entre a tristeza e a alegria: «É sempre tão rejuvenescedor confiar nas pessoas! E não será isto, no fim de contas, a felicidade?» O próprio conto enquanto género literário está sujeito a discussão: «narrativas em que se conquistam mulheres, se fazem fortunas, se vivem farras ou grandes aventuras, são normalmente descritas na primeira pessoa – porque a identificação, feita posteriormente pelos leitores, lisonjeia o inato orgulho de todo e qualquer indígena…» A felicidade («A felicidade vem mais dos braços abertos e do coração puro do que de qualquer acumulação de bens materiais») é o mote do conto de Natal em que o protagonista vende um relógio que foi do avô para comparar uma jóia que a mulher não a podia usar porque tinha cortado o seu cabelo para lhe comprar a corrente para o relógio. Há na geografia destas páginas uma oscilação entre o tempo da Província e o da Grande Cidade. Na Província é o café que organiza o Mundo: «a Filomena terminou em glória – qua já era mais do que altura de todos nós irmos aos nossos afazeres, ela a fazer fichas para o hospital, eu a receber os devedores do Estado, a Gabriela para o liceu, só dois ou três ali ficavam – de férias os sortudos.» Na Grande Cidade é outra a narrativa mas o café continua a ser central no Mundo: «Quando o Granada fechou as portas – para se transformar em agência bancária – eu tive de mudar de barbeiro e passei a frequentar a Rua do Ouro, almoçando de seguida na Rua da Conceição, no famoso Facho, bem perto do prédio onde o Mário de Sá-Carneiro fez as malas, antes de se ir matar a Paris.» Um dos mais belos contos da antologia é o da página 51, Anfitrion; eis um excerto: «Esta é a história de Anfitrion, uma rapariga cega que na terrível manhã de Pompeia estava no seu quarto. Defronte de si tinha o amado e pelo tacto jogavam uma partida de xadrez. (…) Eram seres inteligentes e sensatos que não trocavam a incógnita da velhice futura, quem sabe se a morte certa logo ao sair de casa, a saciedade e o desencanto de que à sua volta se recordavam, pelo fulgor da hora presente, e assim continuaram sacrificando no altar de Eros. Não se sabe quem ganhou a partida ou de quem era a vantagem final, mas o xeque-mate esse pertenceu ao Vesúvio que assim lhes prestou homenagem e intactos os conservou para nossa satisfação e claro exemplo.» (Edições Piaget, Selecção e Prefácio: Isabel Ponce de Leão, Capa: Dorindo Carvalho) --

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por José do Carmo Francisco às 10:12

Quinta-feira, 10.09.15

«beijo técnico e outras histórias» de fernando venâncio

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Fernando Venâncio coloca uma frase de José de Almada-Negreiros no fim deste livro mas poderia fazê-lo na primeira página porque a frase é todo um programa de escrita: «Nós não somos do século d´inventar palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d´inventar outar vez as palavras que já foram inventadas.» Trata-se, sem dúvida, de uma «homenagem à literatura» no sentido total e completo da ideia. Vejamos o texto da página 61: «Gostava de Almada, de Leiria, de Bragança. Gostava. Muito e muito. Viu Almada ainda na televisão, conheceu Bragança em pessoa, mas para Leiria já chegou tarde. Leu-os a todos três. Com entusiasmo. Com a conformada certeza de que melhor ninguém faria. Um dia deixou até de lê-los. Já os sabia de cor.» Magnífica esta confusão estabelecida entre os nomes dos escritores que nem todos conhecem e das localidades portuguesas que todos conhecem. Essa «homenagem à literatura» renova-se no texto da página 37: «Deu-lhe muito trabalho mas ao fim de cinco semanas tinha metido tout Leiria no computador. Descarnara-lhe as histórias uma a uma e apertara-as em fórmulas algébricas que até faziam dores à vista. Mas detectava-se já um princípio de movimento.» O mundo deste livro engloba o futebol («Sempre aquele fenómeno o havia fascinado: o clamor que se ergue dos estádios quando, algures longe dali, num jogo paralelo mas igualmente decisivo, houve uma mexida no marcador») mas também as auto-estradas: «Surgiram primeiro os agrimensores, depois os engenheiros, logo a seguir os catrapilas. O que era um carreiro arborizado, por onde, dia ou noite, voavam os braços um do outro, eis o que foi removido, entulhado, aplainado, alcatroado.» Afinal é o amor que tudo faz mover neste livro. Pode ser o amor propriamente dito («O amor é tão grande que até no escuro encontra a luz») ou também o amor cósmico, presente na última página do volume: «O último homem sobre a Terra entrou no Facebook e escreveu: «Está aí alguém?» Uma semana depois voltou a ligar. Havia um like. A cinco mil quilómetros. Pôs a mochila aos ombros e partiu.» Poderá ser esta a provisória moral das histórias: a única medida do amor é amar sem medida. (Editora: Ulisseia, Revisão: Ana Salvador, Capa: Love St. Studio) --

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por José do Carmo Francisco às 15:07

Quinta-feira, 10.09.15

«ps memoráveis» de lídia jorge

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A ficha técnica deste livro abre com a advertência: «Os Memoráveis é uma obra de ficção.» Ou seja: «Embora partindo de acontecimentos e personagens reais, trata-se de uma transfiguração literária e, como tal, deve ser considerada para todos os efeitos.» Toda a literatura engloba duas componentes: o sangue pisado e o estilo. Depois de «O dia dos prodígios» de 1980, Lídia Jorge (n.1946) utiliza uma curiosa técnica de abordagem à realidade do dia 25 de Abril de 1974. Neste livro a geografia da cidade de Lisboa mostra uma Avenida da Guerra Peninsular que não existe, uma Sampaio Pina por Sampaio e Pina, uma Rua da Boavista junto ao Quelhas, uma rua D. João V no lugar da rua D. Pedro V, uma Ópera em vez dum Teatro de São Carlos, os curros do Aljube na António Maria Cardoso, uma Rua que ora é da Misericórdia ora é do Mundo e a referência ao tostão já no tempo do Euro. O próprio título deriva do nome do restaurante Memories que nunca surge em itálico nem com o nome de Gambrinus. O uso das palavras, seu peso e sua grafia, mostram neste livro um sentido ora do arcaico ora do moderno: envelopes por sobrescritos, sua por vossa excelência, chefe Maior por chefe do Estado Maior, demais por de mais, aparatos por equipamentos, morraça por escória, oliva por azeitona, esgarrão por remoinho, aposentação por reforma, Pide por PIDE, faculdade por Faculdade, questões por perguntas, humanidade por Humanidade. Quanto ao sangue pisado temos um ponto de partida insólito: em 15-2-2004, 30 anos depois do 25 de Abril, uma cadeia americana de TV prepara um programa – «A História acordada» mas a escrita das andanças dessa reportagem só será concluída em 2010, seis anos depois. O convite para o trabalho jornalístico nasce do desmontar de uma impostura: «A Terra é plana e a História é redonda». Ao mesmo tempo outra mentira entra no discurso do antigo embaixador dor EUA em Portugal sobre a sensatez do Povo de Portugal que no fim de insultos e prisões não se mata entre si. Mas houve mortos à porta da PIDE em 25-4-1974. A reportagem começa com uma foto datada de 21-8-1975 e uma legenda em francês da mãe da jornalista «Tendo sido todos nous muito felices. E nous, lá estavamos». O tempo é o da Revolução: «Toda a revolução é uma grande alegria que anuncia uma grande tristeza». São cinco as perguntas feitas aos homens da foto: «Onde estavam? O que sentiram na altura? Que balanço fazem agora, passados trinta anos? Qual a melhor imagem que guardam de tudo o que aconteceu? E você mesmo, quanto ganhou com isso?».O trabalho da jornalista não é fácil («encontrar nas pedras da calçada o resto daquela metralha») na procura do resultado: «mais importante do que a verdade é a beleza». Nesta peregrinação surgem coincidências («são as impressões digitais de Deus nesta vida sem Deus») e inesperadas revelações: «o meu marido dizia que havia uma proporção entre o tempo que se passa sem liberdade e o tempo que se demora a aprender a viver em liberdade.» Em paralelo à reportagem com as figuras da foto de 21-8-1975, o pai de Ana Machado, que também é jornalista e está na fotografia com os protagonistas militares, vai-se retirando da vida. Deixa de escrever no seu jornal, deixa de pagar em casa as contas da água e da luz porque se sente exilado no seu país: queria Democracia e só tem eleições. (Editora: Dom Quixote, Capa: Rui Garrido, Foto: João Pedro Marnoto, Revisão: Clara Boléo) --

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por José do Carmo Francisco às 11:01

Quarta-feira, 09.09.15

«alfacinhas» de alfredo de mesquita

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Alfredo de Mesquita (1871-1931) publicou este livro em 1910 mas, passado um século, a escrita límpida deste olisipógrafo natural de Angra do Heroísmo mantém a sua eficácia. Lembra um tempo mas também um estilo: «Um bombeiro era sempre um benemérito, um professor de instrução primária sempre uma vítima, uma sogra sempre uma fera». As crónicas deste livro são um intervalo feliz entre o poema e o conto, o ensaio sociológico e a antropologia, a memória e o esquecimento mas para o autor o Jornalismo é uma disciplina da Literatura: «Todos querem ser mais do que podem e parecer mais do que são. Ser ambicioso nem sempre é mau; mas a ambição assim é desvario. A literatura desvairou também.» Os textos do livro são anteriores à República; daí o Rei no Parlamento: «O que o governo não puder fazer para bem da Nação há-de fazê-lo a Divina Providência. O povo confia.» A política («governos, partidos, oposições, blocos, maiorias, coligações«) é uma excelente ocasião para lembrar a importância social da filarmónica: «É a dos regeneradores ou é a dos progressistas? É a filarmónica! A política pode ter música mas a música não tem política.» O ponto de partida é a janela; seja a janela da cidade («Há janelas de Lisboa que são jardins, outras que são quintais») seja a janela do cronista: «Desta larga janela rasgada de par em par, por onde a vista me foge». Cada crónica é um «passeio sem destino e sem horas». Tanto pode ser a Benfica («Em menos de duas horas chegava o carro a Benfica») como a Veneza: «Veneza é triste mas não há realidade que mais lembre o sonho». Tanto pode ser de ónibus («Faziam parte integrante do ónibus o cocheiro e o condutor, duas criaturas em tudo opostas») como a pé nas ruas de Lisboa, pronto a encontrar honestos saloios («roupa lavada, vinho, pão, queijo, ovos, manteiga, água») como vigaristas: «O charlatão tornou-se pessoa respeitável. Ele não é um profeta: é um positivista. Ele não é um apóstolo: é um comerciante. Ele não é um maluco: é um homem de juízo. Ele não é um dissidente: é um oportunista.» As ruas são um Mundo onde se cruzam os gatos («Feixe de nervos, magro, o pelo curto, a unha rija, o estômago de ferro, a espinha de aço, o olho temerário») e as criadas («Os tempos mudam e tudo muda com os tempos: pois também a criada muito tem mudado»), os automóveis das viagens de núpcias («os noivos estão arrependidos de tanta pressa terem tido em casar») e também os seus namoros em São Pedro de Alcântara: «Donde era? – De Bixeu… arredada duas léguas… - Ena, que longe! – considerava ele. E como era longe, chegava-se mais para ela – para que ficasse mais perto.» Em 144 páginas o autor não esquece a adversativa da senhora de boa sociedade que em 1880 perguntou: «Mas afinal ele era realmente Camões ou chamavam-lhe assim por ser cego de um olho?». «O povo em Portugal é ainda tão ignorante como a senhora de boa sociedade a quem se atribui esta raia» - conclui Alfredo de Mesquita. (Edição: VEGA, Direcção: Carlos Consiglieri, Capa: Luís Eme, Apoio: CML-Cultura, Editor: Assírio Bacelar) --

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por José do Carmo Francisco às 11:37

Terça-feira, 08.09.15

«húmus» de raul brandão

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Não por acaso dedicado ao Mestre Columbano (Bordalo Pinheiro), este clássico de Raul Brandão (1867-1930) é a paisagem povoada de uma Vila imaginada mas real: «Mora aqui o egoísmo que faz da vida um casulo e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existência de rancores e, atrás de ano de chicana, consome outro ano de chicana». Joana, a criada («Serviu primeiro na vila, serviu depois na cidade») vive na casa da D. Hermengarda: «Faz rir e faz chorar. Já ninguém estranha que a Joana aguente e a manhã a encontre de pé, a rachar lenha, a acender o lume, a aquecer a água. Mal se compreende que, depois de uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocência de uma criança».

Na Vila cartografada de «Húmus» a vida é um intervalo entre o sonho e a dor, um edifício de palavras: «Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem.» Entre a vida e a morte, entre tabiques e palavras, surge o espanto do Mundo: «Só a insignificância nos permite viver. Sem ela já o doido que em nós prega tinha tomado conta do mundo». O Gabiru (ridículo, grotesco, caótico) é uma voz do livro. Começa por avisar («a sensibilidade não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade que vai dos nossos nervos até à Via Láctea para transformar as noções do tempo, do espaço, da vida e da morte») e por fim adverte: «O mistério é este e mais nenhum: é exprimir como o que é espírito se transforma em matéria, como a poeira se condensa, como a alma se faz corpo». Entre a vida e a morte existe o sonho («o nosso sonho é não morrer») mas o Gabiru insiste na vida: «viver é que é bom, viver com o instinto, como os ladrões e os bichos, os malfeitores e as feras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, até cair a um canto, morto e feliz». Mas ao viver correm-se riscos de ser preso mas «Na cadeia também se come pão.» Perto do fim deste livro maravilhoso ouvem-se gritos e lágrimas («os ladrões das estradas desatam a chorar») e o Gabiru pergunta («Ouves o grito?») para logo a seguir decretar: «É preciso matar segunda vez os mortos.» (Edição: Porto Editora, Colecção Portuguesa, Apresentação: Lilaz Carriço) --

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por José do Carmo Francisco às 10:20



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