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Transporte Sentimental



Segunda-feira, 31.08.15

«levante-se o réu» de rui cardoso martins

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Rui Cardoso Martins (n. 1967) deslocou-se como jornalista aos tribunais de 1990 a 2007 e dessas 700 audiências nasceram as crónicas para o jornal «Público» das quais este livro seleciona cem. Portugal é terra de bons cronistas, sempre o foi, basta ver os livros organizados por Fernando Venâncio e Ernesto Rodrigues (Círculo de Leitores) com uma selecção cronística dos séculos XIX e XX. E, nesse caso em concreto, lembro as crónicas de Manuel Geraldo, alentejano da Salvada (Beja) que no velho «Diário de Lisboa» escreveu durante anos a coluna «Um juiz no alto do parque» com os casos de tribunal de pequena instância. O pormenor é que tanto Rui Cardoso Martins como Manuel Geraldo nasceram no Alentejo e é daí que vem o tom humanista dos textos. Numa das crónicas deste livro (página 356) essa aproximação é clara: «O stress do Alentejo interior. Só sabe quem lá nasceu. É como o frio e o calor do Alentejo, armazenam-se no tutano dos ossos, muito quietos, à espera de os rachar». Neste seu quinto livro publicado, Rui Cardoso Martins resgata do efémero dos dias o peso das palavras de cada crónica, a sua densidade e temperatura, misturando de modo feliz o sangue pisado da vida com o estilo da literatura. Este livro lembra as palavras de Jacinto Baptista em 1978 no «Diário Popular»: «O jornalista é o historiador do quotidiano». Fiquemos com este exemplo a propósito de um homem que comprou a fotocópia do passe da CARRIS: «Há escalas incomparáveis – o medo clandestino dos sem-papéis , as mortes nas travessias por terra e mar nas redes mafiosas – mas também há coisas partilhadas por todos os que desembarcam em Lisboa. Da província o advogado foi para a capital e terá talvez nos primeiros dias vivido a exaltação e a luz da cidade, mas logo depois o tamanho, escuridão e tristeza, e as pessoas que se ignoram, mesmo se amarradas em molhos de feno nos transportes públicos, e alguém quer trocar um sorriso, um bom dia como nas terras educadas, e só fazer de parvo, estampando-se em caras que são paredes. O suor motorizado da cidade. A aventura até finalmente encontrar um Lino, um sino da sua aldeia na tarde do Rossio e, com sorte, arranjar um passe barato para as deslocações.» (Editora: Tinta- da- China, Capa: V. Tavares) --

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por José do Carmo Francisco às 11:40

Domingo, 30.08.15

«temor único imenso» de rui almeida

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Depois de «Lábio cortado» (2009), «Caderno de Milfontes» (2012) e «Leis da separação» (2013), o poeta Rui Almeida (n.1972) que coordena o Blog «Poesia distribuída na rua» regressa à edição em livro com este «Temor Único Imenso». Em Poesia o acaso não existe mas por acaso o livro mais recente que li e anotei neste espaço («Sem prazo de validade» de José Correia Tavares) inclui o poema escrito na morte de Carlos de Oliveira (1.7.81) com referência a um verso de Sá de Miranda «o sol é grande, caem co´a calma as aves», verso esse que abre este livro de Rui Almeida. Outro dos poetas referidos por Carlos de Oliveira é Aragon que com humildade avisou: «car j´imite, tout le monde imite, tout le monde ne le dit pas». Aragon escreveu à maneira de Camões e Carlos de Oliveira trabalhou seu poema sobre o trabalho de Aragon, praticando assim uma dupla homenagem. Toda a literatura é uma homenagem à literatura. No caso deste livro de Rui Almeida as referências são Jorge de Sena, Sá de Miranda, Ruy Belo, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais Brandão. Este livro integra 29 poemas de 10 versos e um de 9 versos mas a aves que o povoam são mais do que pássaros vivos pois são metáforas do Homem, do Mundo e da História. Porque ao conceito de «ave» se junta a ideia de «viagem» e «vagabundagem»; não por acaso em muitas aldeias portuguesas nos anos 50 se chamava «ave» a quem aparecia na povoação por pouco tempo. Como no poema da página 1: «Eram de novo as aves e morriam / Doutras armas porém do mesmo modo / Eram de novo e era de novo outono». A sobrevivência das aves e também do Homem está no poema da página 8: «Diante das aves caem migalhas / Silenciosos pedaços do mundo / A prometer sustento. Para as aves / Fazem parte da existência, do / Convívio com tudo o que existe sempre». O futuro está nos ovos das aves e nos sonhos dos Homens como no poema da página 14: «De um lado ao outro aves se aproximam / Dos territórios onde vão nascer / Suas crias, aves novas, libertas. / Dentro do ovo de que nascem, aves / Transformam-se em matéria que será / Corpo alado, representação de / Vida emergente a deixar-se voar / Para outros territórios distantes / De onde se deslocam novas aves.» (Editora: Labirinto, Design: Daniel Gonçalves, Coordenação: Victor Oliveira Mateus, Colecção: contramaré) --

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por José do Carmo Francisco às 16:27

Sábado, 29.08.15

«sem prazo de validade» de josé correia tavares

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José Correia Tavares (n.1938) estreou-se com «A flor e o muro» (1962) o que significa já ter 52 anos de percurso poético até este recente «Sem prazo de validade» que integra três livros («Beco do Imaginário», «Como risquei diamantes» e «Travessa da Fantasia») em 152 páginas. O ponto de partida é um poema antigo: «Pardal / recuso-me a emigrar / vou comendo as migalhas / que deixam nas toalhas / enquanto o vendaval / durar». O ponto de chegada é um poema moderno: «Sem dares por isso / passaste duas folhas / E as páginas par e ímpar / que não leste / continham a salvação da tua alma». No intervalo entre os dois poemas (1963-2009) o livro surge como uma «homenagem à literatura» no sentido da hábil mistura do «estilo» com o «sangue pisado». O sangue pisado aparece no poema «Tinha que ser» («Vivendo em fascículos / (por etapas?) / normalmente a malta / safa-se / mas na confusão / há sempre um filho dum cão / que nos salta ao caminho / E morremos assim / à Joaquim Agostinho») ou no «Autocarro 42»: «Não se lavam os ciganos / ciganas são piolhosas / mas para nós lorquianos / mesmo assim cheiram a rosas. / Cheiram às rosas jasmins / aos cravos na Andaluzia / seus gaiatos querubins / - milagres da poesia». Por sua vez o «estilo» ou a escrita surge nas referências a Pablo Neruda, Eugénio de Andrade, Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira. Vejamos o primeiro: «Nas condições mais precárias / dominantes incertezas / por tuas mãos perdulárias / arbustos e araucárias / o pão em todas as mesas» em «Revisitar Neruda». Vejamos o segundo em «Para nos deslumbrar»: «Aurora boreal depois da neve / domínio dos últimos ventos / sempre tão glaciais / ressuscitando arde uma rosa / entre o branco e o vermelho / na poesia de Eugénio de Andrade». Fixemos o terceiro em «Manuel da Fonseca»: «Depois da barba / ficares a olhar para o espelho / porquê / se é sempre um escritor mais velho / que o Poeta vê?» Por fim o quarto em «Micropassagem»: «Ler não / hoje vou rezar passando-a entre os dedos / tua poesia / fio de grainhas / uma das poucas litanioladainhas / por nossalma. / No lá fora / o sol é grande / caem com a calma de suores suaves / as aves não mudáveis / perto sabendo embora / de outras rapinantes refrigério. / E és nem depois nem antes / Inteiro / também em teu rosário / cada uma das partes um mistério». Como bem assinala o prefácio de Liberto Cruz «a poesia não tem prazo de validade» (Editora: Húmus, Capa: António Pedro, Prefácio: Liberto Cruz) --

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por José do Carmo Francisco às 20:07

Sexta-feira, 28.08.15

«minha mulher a solidão» de vergílio alberto vieira

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Depois dos anteriores «Destino de Orfeu» (1987) e «A invenção do adeus» (1994), esta é a terceira experiência de Vergílio Alberto Vieira (n.1950) na vertente diarística, Trata-se de facto de um diário (2003-2013) cujo título vem de um poema de Fernando Pessoa: «Minha mulher, a solidão / consegue que eu não seja triste / Ah, que bom é ao coração / ter um bem que não existe». As páginas do diário registam encontros com livros de autores tão diversos como Maria Ondina Braga, Fiama, Clara Janés, Ramiro Fonte, Ruben A., Manuel António Pina, António Ramos Rosa, Mário Cesariny ou Jorge de Sena. Sobre Roby Amorim (1927-2013) uma nota na página 113: «O jornal onde trabalhou remeteu a notícia para um canto de página infame; a cidade ignorou-o, a favor das encenações que a pornografia consumista elege, pelo Natal, até à náusea, sem respeito por quem da sua terra nunca esperou auréola de santidade nem pensou pudesse encontrar quem tivesse lido Elucidário de conhecimentos quase inúteis. Eis, pois, uma boa razão para reconhecer que só os medíocres são profetas na sua terra.» Referimos apenas quatro no0tas. Primeiro sobre Poesia: «Porque somos mortais, inseparáveis da matéria? ou só porque a poesia pode ajudar o homem a ir além de si. Talvez, por isso, possa dizer-se que a poesia explica a vida, mesmo quando a vida não explica a poesia.» Segundo sobre a Guerra Colonial: «A peça (Pára-me de repente) publicada antes pela Editorial Caminho, traz de volta ao imaginário português a saga colonial, jornada que a (des)memória lusitana nunca deu por cumprida, fazendo justiça à vontade dos carrascos que sacrificaram, durante catorze anos, um povo que insiste em não saber quem é». Terceiro sobre a Mãe: «Já soube tecer e fiar como as outras raparigas do seu tempo. Agora, agoniza num leito de morte, de olhar fixo na luz de um dia que não chega a nascer, sem canseira nem tempo, que ajudem a esquecer o reino de Athena que atrás dela se distancia como um barco no mar.». Quarto sobre o Livro: «A lógica industrial que impera, actualmente, no mundo da edição, e a haver excepções só confirmam a regra, anteviu-a Karl Kraus para a idade do progresso como um porta-moedas de pele humana.» (Editora: Crescente Branco, Prefácio: José Manuel de Vasconcelos, Capa: Artemisa (detalhe), Foto: Dario Gonçalves) --

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por José do Carmo Francisco às 22:43

Sexta-feira, 28.08.15

o gasoduto de moscovo ou o enviado-especial à nazaré

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Poderia chamar a esta crónica amarga «Moscovo não acredita em lágrimas» porque as lágrimas não vão parar de cair no rosto de muitos sportinguistas. Alguns deles só perceberam a força e a profundidade da expressão «duas mãos» ao verem que uma mão foi em Alvalade a desviar a bola da cabeça de Slimani e a segunda foi em Moscovo para marcarem um golo igual ao do Paços de Ferreira, aqui há anos em Alvalade, era Ricardo o guarda-redes «leonino». Foi na Nazaré, algures por Julho de 1997 que eu descobri que os árbitros deixaram de ser influentes para serem decisivos. O jogo era importante para o título nacional de Juniores entre o Boavista e o SCO. Os «leões» marcaram logo aos 5 minutos mas o árbitro deu a volta ao jogo e foi arranjando livres à entrada da área «leonina» até a conta chegar a 2-1, perto do final. O jornal «A Bola» escreveu no dia seguinte que o Boavista foi campeão com a ajuda do árbitro mas a expressão «com a ajuda do árbitro» surgiu em itálico. E compreende-se porquê. Quando a maioria das pessoas perceberem o que de facto se passa dentro das quatro linhas e à sua volta deixarão de comprar jornais e de ir aos jogos nos estádios, pagando os respectivos bilhetes. Neste caso de Moscovo percebe-se logo que o gasoduto cheira mal. Não a gás mas a esgoto. O esgoto da corrupção. Alguém terá dito «Custe o que custar e doa a quem doer» a Rússia tem de ter mais uma equipa na Liga dos Campeões. E o SCP foi sacrificado nas duas mãos e com as duas mãos em Lisboa e em Moscovo. A foto é uma homenagem aos tempos em que o destino dos encontros de futebol era decidido pelos jogadores. O ano passado na Alemanha com o Shalke 04 um árbitro russo viu uma mão onde estava um rosto. Hoje a realidade é outra e aprendemos à nossa custa que Moscovo não acredita em lágrimas. --

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por José do Carmo Francisco às 11:25

Quinta-feira, 27.08.15

«antónio henriques» de luís alves milheiro e carlos guilherme sanches de almeida

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O subtítulo dá ideia concreta do âmbito do livro. De facto «O associativista e historiador de Almada e das suas colectividades» é o resumo da ligação de António Henriques (1915-1992) à Incrível Almadense (fundada em 1848) na qual foi de tudo um pouco: filarmónico, dirigente, actor, ponto, comissionista, dramaturgo, editor de Boletins, organizador de festas, colector de donativos – muitas foram as suas actividades dentro da Incrível Almadense. Foi também um infatigável colecionador de memórias, bateu a muitas portas, procurando objectos e recordações sobre as colectividades de Almada, em especial da Incrível Almadense mas não só. Ainda se encontram inéditos dois trabalhos seus: «a biografia do Maestro Leonel Duarte Ferreira e a História da Associação de Socorros Mútuos 1º de Dezembro; o primeiro de 1971 e o segundo de 1983». António Henriques aderiu em 1946 ao MUD com (entre outros) José Carlos Pinto Gonçalves, Henrique Barbeitos, Felizardo Artur, Mário Fernandes, Domingos Miguel, Firmino da Silva, José Alaíz, Romeu Correia, Raimundo José Moreira, Mário Augusto, Fernando Gil, Anselmo Baptista Lopes Júnior e José Baptista Oliveira. No ano de 1948, ano do centenário, esteve na origem da reconciliação da «sua» Incrível com a Academia Almadense, fundada em 1895 a partir de uma ruptura dentro da Incrível Almadense. Como afirmam os autores no início do livro «Muitas vezes as colectividades são apelidadas de «universidades do povo». Mas estas são quase sempre mais do que isso. São verdadeiras «escolas» de civismo e de companheirismo, graças ao seu sentido colectivo, sempre presente, onde tudo parece ser possível graças à força e à vontade dos homens. Isso explicará em parte o porquê de António Henriques ter sido músico, actor dirigente, coleccionador, poeta, publicista, historiador e tudo o mais que lhe pediram, no seio da sua Incrível Almadense.»

Ao longo das suas 184 páginas este livro mostra o retrato multifacetado de um associativista apaixonado que, da «sua» Incrível Almadense partiu para outras paixões (a Música, o Teatro, a História, a Escrita) mas sempre sem sair das fronteiras da Colectividade onde entrou com nove anos de idade para frequentar a Escola de Música. (Prefácio: Orlando Laranjeiro, Capa: Luís Eme, Revisão: Luís Bayó Veiga, Edição: Comissão Organizadora das Comemorações do Centenário de António Henriques) --

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por José do Carmo Francisco às 15:38

Quinta-feira, 27.08.15

«conversas com a tia valentina» de manuela nogueira

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Manuela Nogueira começou por publicar Conto em 1962 («O dedo indicador») e Romance em 1966 («O pintor louco do meu tempo») mas a Poesia e a Literatura Infanto-Juvenil bem como a tradução e a fixação de textos («Cartas de amor») integram o seu vasto leque de interesses enquanto autora e sobrinha de Fernando (Nogueira) Pessoa (1888-1935). Esta narrativa tem como protagonista Vera («Minha mãe morreu quando eu era muito pequena e meu pai foi viver para Angola») que se dirige à Tia Valentina («filha de pai israelita, viúva de médico de ascendência judia») e recebe da mesma uma advertência solene. Primeiro em termos metafísicos («não acendas a lenha porque ainda está húmida») e depois em termos objectivos: «o tempo que estamos a viver é o único que temos, não o podemos desperdiçar». A organização do texto contém uma dupla inscrição – pessoal e mundial. De um lado a família da Tia Valentina e, do outro, o Médio Oriente e os seus problemas: «dizem os judeus que Deus lhe deu aquela terra enquanto os palestinos atestam que há mais de 1.400 anos já era habitada por árabes». Vera espreita o que a Tia Valentina escreve num livro de capa preta («O amigo que já não tenho para conversar») a funcionar como uma espécie de Facebook manual: «o facebook misterioso da Tia Valentina». Entretanto surge no Médio Oriente uma esperança chamada «One Voice Movement»: «No grupo há setenta e dois casais israelo-palestinos. Como filha e viúva de judeus e tendo vivido num kibbutz nos anos cinquenta, posso dar alguns exemplos». A esperança é ténue no meio do conflito político como ténue é a vida de um bebé prestes a nascer numa família atravessada por crises como é o caso da família da Tia Valentina. Duas gralhas («xicana» por chicana na página 83 e «demais» por de mais na página 59) não alteram o fascínio de um livro sempre em dupla inscrição e com uma mensagem final de esperança: «Afinal, judeus e palestinos são primos direitos e podem entender-se». (Editora: DG Edições, Capa: Manuel França, Prefácio: Maria Estela Guedes) --

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por José do Carmo Francisco às 11:54

Quarta-feira, 26.08.15

mário lago «compositor» e outras discrepâncias por escrito

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Na minha modesta, curta e discreta nota de leitura sobre o grande livro «Brasil – uma biografia» de Lília Schwarcz e Heloísa Starling (grande em todos os sentidos) chamei a atenção para o facto de na página 395 aparecer referido Mário Lago como «compositor» mas um olhar diferente leva-me a reflectir de novo sobre esta palavra aplicada a Mário Lago. Tenho à minha frente dois dos seus livros, «Rabo da noite» (contos) e «Manuscrito do heróico empregadinho de bordel» (romance) e na contracapa de um deles está escrito «ator, autor, compositor, escritor». Para mim o problema não está no «ator» em vez de actor mas sim no «compositor» porque para nós em Portugal o compositor é o músico, o autor da letra é o letrista. Tanto quanto sei as únicas composições de Mário Lago são três valsas, tudo o resto são parcerias. Parcerias como as que eu tenho com José Cid; eu com a letra, ele com a música, nada mais. E isto nada tem a ver com o Aborto Ortográfico porque ainda há pouco tempo li (em português do Brasil) o livro de Pitigrilli «Delicocéfala loira», uma edição portuguesa da «Minerva» mas traduzido por G. Falcão para a Casa Editora Vecchi do Rio de Janeiro. Nesse livro anotei algumas palavras como ginecólogo por ginecologista, pregunta por pergunta, Dom Quichote por Dom Quixote, Samothracia por Samotrácia, taxímetro por táxi, ómio por ohm, vóltio por volt, cordeal por cordial, peruvianos por peruanos, bemfeitor por benfeitor, escrevaninhas por escrivaninhas e horoscópia por horóscopo. O próprio Mário Lago numa entrevista televisiva referiu que gostava mais de dizer «boemia» do que «boémia», afinal uma coisa de «puristas». Além disso, acrescentava, «Boémia é um lugar onde nasce gente». Conclusão provisória embora – Mário Lago compositor só se for das três valsas, do resto foi sempre em parceria. --

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por José do Carmo Francisco às 16:00

Quarta-feira, 26.08.15

elegia breve para a mulher-menina na cidade (foto de oleg basyuk)

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Todas as manhãs são sempre um pouco tristes porque passa a haver uma a menos no nosso Mundo e na nossa Vida mas o olhar da mulher-menina transporta, conserva e incorpora a força dessa luz que empurra todas as neblinas e chega à cidade grande com o vigor capaz de fazer durar a força da manhã até ao fim da tarde. Para trás ficaram as ondas e a sua espuma na praia como uma borracha gigante a apagar o desenho dos pés de quem, na noite passada, ali veio rezar uma oração sem palavras na liturgia dum tempo de dizer adeus ao amor de Verão. Entre a areia das praias e a pedra da serra, a voz da mulher-menina sobe até ao timbre da canção entoada de modo discreto por quem atravessava as ruas a apregoar os morangos e os figos mais frescos das várzeas, dos brejos e das hortas. De repente é como se entrassem de novo no meu quotidiano os apitos dos sinaleiros, as campainhas dos eléctricos de atrelado, a cidade de Lisboa tal como era em Setembro de 1966 quando aqui cheguei com o diploma de um curso comercial e uma mala onde nem os sonhos cabiam nem eu podia com a carga do seu peso específico. O castelo em frente tem pedras com História onde se cruzam o passado, o presente e o futuro mas para mim o castelo é um pretexto para lembrar as minhas filhas que tanto em Londres como em Sydney juntam pedras para o meu castelo de saudade. Na rua aqui ao lado passavam há cem anos algumas mulheres a caminho dos moínhos da Cotovia. Porque aqui havia e continua a haver muito vento. Cem anos passaram num instante mas o olhar da mulher-menina não passa e permanece neste lugar iluminado pela luz do campo no centro da cidade. --

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por José do Carmo Francisco às 10:12

Terça-feira, 25.08.15

«brasil - uma biografia» de lília schwarcz e heloísa starling

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O livro apresenta 691 páginas no total e tem 503 páginas de ensaio a dar ideia concreta do país que é um continente e onde tudo é grande. As 188 páginas incluem notas, bibliografia, cronologia e índice remissivo. Não por acaso em 2008 na Festa do Livro do Ceará houve notícia dum manual escolar editado no Paraná que incluía um mapa brasileiro onde o Estado do Piauí não constava. Data de 1630 o primeiro texto sobre a História do Brasil assinado por Frei Vicente do Salvador: «Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do seu bem particular». País de contrastes, o luxo e o lixo convivem lado a lado, tal como a Constituição avançada e o preconceito silencioso e perverso: «No país o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano com o rural; o exótico com o civilizado – e o mais arcaico com o mais moderno coincidem, um persistindo no outro, como uma interrogação.» Tom Jobim advertiu «o país não é para principiantes», um país cujo nome vem do latim: «deriva do nome «brasilia» cujo significado é «côr de brasa» ou «vermelho». Depois da madeira, o açúcar deu origem a outra civilização: «o doce de cana se fez às custas do travo da escravidão. Amargo açúcar, ardida doçura.» Essa civilização vivia dos escravos que na Baía chegavam a 75 por cento da população e eram: «as mãos e os pés do senhor do engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda.» A escravidão «moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez da raça e da cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e pela hierarquia.» Por exemplo a capoeira era originariamente uma luta mas foi mostrada como uma dança. A escravidão criou um universo de disfarces e de negociações.» O conde de Assumar governou o Estado de Minas (1717-1721) com mão pesada e escreveu para Lisboa que «Minas é habitada por gente intratável. A terra parece que evapora tumultos, a água exala motins, o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares, vomitam insolências as nuvens, influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião.» Essa rebelião que levou muita gente em Vila Rica (Ouro Preto) a gritar «Viva o povo e morte aos enviados d ´el-rei». O imperador D. Pedro gostava de astronomia e em 1883, no Carnaval, brincavam com o seu interesse: «De tanto olhar para o céu, nosso Imperador vai perder o caminho da terra.» De facto ele voltava-se para a Europa, afastando-se do imaginário local e transformava-se num monarca como os outros. Mais tarde Gilberto Freyre exprimiu as três raças: «Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ou do negro.» A questão da escravatura não punha a escravatura em questão e, um ano e meio depois da abolição oficial, o Hino Nacional proclamava: «Nós nem cremos que escravos outrora / Tenha havido em tão nobre país». E Lima Barreto escreveu o seguinte: «É triste não ser branco». São Paulo e Rio de Janeiro sempre tiveram rivalidades; Osvaldo de Andrade chamava a São Paulo a «locomotiva» que puxava os vagões do Brasil e no auge da luta de 1932 chegou a ser proclamado: «Por São Paulo com o Brasil se for possível; por São Paulo contra o Brasil se for preciso!». Nas «Memórias do Cárcere» de 1953 Graciliano Ramos recorda o encarregado dos presos na Ilha Grande no tempo de Getúlio Vargas: «Vocês não vêm corrigir-se; vêm morrer». O mesmo Getúlio suicidou-se em 24-8-1954 deixando uma mensagem: «saio da vida para entrar na história» O general Médici disse em 1968 uma frase terrível: «o país está muito bem; o povo é que vai mal.» De todos os crimes da ditadura militar (1964) o mais repugnante foi cometido contra os indígenas: «matanças de tribos inteiras, torturas e toda a sorte de crueldades foram cometidas contra indígenas brasileiros por proprietários de terras e por agentes do Estado, caçadas humanas feitas com metralhadoras e dinamite atirada de aviões, inoculações propositadas de varíola em populações indígenas isoladas e doações de açúcar misturado com estricnina.» Este livro está escrito para o leitor do Brasil e aparecem palavras como «cacatuas» (188), «grita» (198), «anular» (274), «hidrelétricas» (409), «indenização» (445) «boia fria» (485) ou «anistia» (487) além da abreviatura da OPEP surgir como «Opep», entre muitas outras. Nota-se a falta de aspas na página 474 antes do nome da canção «A estrada e o violeiro» e Mário Lago é referido na página 395 como «compositor» e não como actor ou ficcionista. A frase mais famosa do romance «O leopardo» de Lampedusa aparece na página 235 como «Se queremos que tudo continue como está é preciso que tudo mude» quando o príncipe terá dito, depois de votar, «É preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma». (Editora: Temas e Debates / Círculo de Leitores, Capa: Victor Burton) --

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por José do Carmo Francisco às 15:40

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