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Transporte Sentimental



Segunda-feira, 29.09.14

vi esta foto nas tabernas e nas barbearias de santa catarina

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Pela boa vontade do meu amigo Levi Condinho recebi esta fotografia do Caldas Sport Club – Sub-campeão nacional de Futebol da II Divisão de 1954/55. Começo pelos nomes. Primeiro plano: César, Caliccho, Martin, António Pedro e Anacleto. Segundo plano: Victor, Romero, Leandro, Wilson, Fragateiro, Louro e Amaro. Escrevem mal Calicchio, Marti e ignoram o «Dr.» de Wilson. Estas erratas fui descobri-las no Blog «caldense d´gêma» de Fernando Pacheco. Nele descobri a alcunha «Pé-de-Léke» dada ao jogador do Caldas cujo nome civil era Piteira. Em Santa Catarina chamavam «Pé-de-Léke» aos mais habilidosos. A alcunha era um elogia. No campo do Rio da Pedra ouvia-se às vezes um grito de Juventino Freire - «Ah seu Pé-de-Léke! Assim é que se enxofra!» O meu amigo Levi Condinho (Bárrio, 1941) foi nos anos 50 à Nazaré ver um desafio muito especial em que o nosso Caldas bateu a Académica de Bentes, Capela e Azeredo por 4-1. Outros tempos, outras memórias do «famoso Caldas dos anos 50» como ele recorda na sua carta de 23-9-2014. Não deixa de ser espantoso (eu ainda me espanto) que estamos em 2014 e só hoje descobri uma das dúvidas da minha infância (nasci em 1951) para além de ter redescoberto esta fotografia que faz parte integrante da minha vida. Santa Catarina tinha muitas tabernas e algumas barbearias mas em todas elas figurava esta fotografia da equipa do Caldas Sport Club – uma edição do «Mundo de Aventuras» em «separata» como então se escrevia. A infância é também isto: o tempo em que nem as lágrimas nem os beijos têm preço, o sangue pisado das paixões, os domingos à tarde quando no campo do Rio da Pedra se jogavam os prélios nos quais as camisolas do nosso grupo eram iguais às do Caldas da fotografia. E tudo era muito longe nessa estrada de maquedame. --

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por José do Carmo Francisco às 16:46

Domingo, 28.09.14

«espaço livre com barcos» de graça pires

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Depois do primeiro livro em 1990 («Poemas») que recebeu o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores, Graça Pires surge com este «Espaço livre com barcos», o seu 16º titulo de Poesia. O ponto de partida deste longo poema de 40 páginas é um lugar, o início de uma viagem: «Da casa que me separa da infância /avistava-se o lugar onde as águas / mais espessas do rio se juntam ao mar. /A foz. A ondulação crescente / desafiando as areias.» A narrativa poética vem da autobiografia («Eu te baptizo em nome do mar / disse minha mãe com barcos na voz.») mas, depois de passar pelos poemas à filha («Junto ao cais não digas adeus ao teu amado») e ao filho («Ajusta a areia aos teus dedos de criança»), à irmã («Tempo de criança: tão longe/ e tão próximo do teu nome») e ao irmão («Instáveis como as sombras, as nuvens / perpassam o teu olhar carregado de melancolia») e também ao companheiro («Encostado à amurada de um navio / recordas viagens inacabadas»), este livro de Graça Pires vem convocar uma dupla inscrição (vida e literatura) como nos poemas que são dedicados a escritores - Marta López Vilar e Victor Mateus. Vejamos o primeiro: «No ventre da tua mãe começaste a amar as águas. / E soubeste como se abrem os diques da pele / para jorrarem em litorais que explodem / as marés assediadas pela lua. / Depois quiseste ser cais e barco, / âncora e vela, abrigo e naufrágio. / Tens agora um mar aberto a inundar-te o olhar. / Para sempre.» Reparemos no segundo: «És um navegante solitário. / Cartografas com precisão / todos os vórtices. / E deixas que uma luz coada / entre no convés, pela escotilha, / para esqueceres como são brutais / e longas as cordas da noite / quando recolhes os despojos / dos naufrágios mais secretos.» Entre o «sangue pisado» da biografia e o «estilo» da escrita, Graça Pires prova saber, como Camilo Castelo Branco, que «A poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade». (Editora: Poética Edições) --

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por José do Carmo Francisco às 10:40

Sábado, 27.09.14

«novo dicionário do calão» de afonso praça

Afonso Praça (1939-2001) passou desde 1961 pelos jornais Diário de Lisboa, República, Diário de Moçambique, O Jornal, O Sete e O Bisnau e pelas revistas Flama, Vida Mundial e Visão. Foi, segundo António Valdemar, «um dos mais notáveis jornalistas da sua geração». Este dicionário de 285 páginas começa em «a abrasar» (andar muito depressa) e termina em «zurrapa» (vinho ordinário) e tornou-se (segundo Regina Louro) «um livro de referência para tradutores, professores, alunos, jornalistas e cidadãos curiosos» embora (segundo Sara Belo Luís) se possa também considerar «um pequeno manual para o melhor insulto». Um dos aspectos mais curiosos deste dicionário é o facto de o seu autor integrar nos verbetes citações de diversos escritores. Uns serão menos canónicos como José Vilhena, Luís Campos ou o Pad-Zé de Coimbra. Outros são autores de culto como Vitorino Nemésio, Urbano Tavares Rodrigues, Trindade Coelho, Natália Correia, Luís Pacheco, Júlio César Machado, José Cardoso Pires, Fialho de Almeida, Fernando Assis Pacheco, Eça de Queirós, Dinis Machado, Camilo Castelo Branco, António Lobo Antunes, Aquilino Ribeiro e Alves Redol. Uma das palavras mais difíceis é «cena» (situação ou acontecimento) e daí a transcrição da entrevista dum elemento do grupo Family: «E a cena da cor? A cena de haver bumbos a rappar? «É normal, é normal porque … a cena que se ouvia lá, a maior parte são os negros que fazem, e então é muito mais fácil haver mais negros a ouvir a cena do que brancos a ouvir… Eu já ouvi muita cena «os negros é que sabem, o que é que é», «os negros é que sabem rappar», não é assim, tás a ver? Tu podes ser branco e perceberes da cena e sentires a cena da mesma maneira». (Editora: Casa das Letras, Actualização: Cláudia Almeida, Pedro Dias de almeida e Rodrigo Dias, Capa: Maria Amorim, Revisão: Ayala Monteiro) --

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por José do Carmo Francisco às 11:22

Sexta-feira, 26.09.14

«vida e obra de fernando pessoa » de joão gaspar simões

«Vida e obra de Fernando Pessoa» de João Gaspar Simões Este volume é a sétima edição do já clássico livro de João Gaspar Simões (1903-1987) estudando a obra e a vida de Fernando Pessoa (1888-1935) que sobre o assunto escreveu: «a minha vida gira em torno da minha obra literária – boa ou má, que seja, ou possa ser». A tarefa do autor não é fácil: escrever em 1949, 14 anos apenas depois da sua morte, «o drama de uma existência em cujos bastidores, ocultamente, durante quarenta e sete anos, se foi estruturando a obra que havia de ser o laço imortal que prenderia à Terra esse ser cuja Pátria não era, em verdade, deste mundo». Para tal recorreu ao testemunho de amigos, parentes, conhecidos, familiares, patrões, camaradas e criados de café. O livro chegou a chamar-se «Explicação de Fernando Pessoa» e refere que o poeta da Ode Marítima nasceu entre «uma das nossas igrejas mais tipicamente lisboetas e o nosso primeiro teatro lírico». Anos depois esse lugar surge numa quadra: «Ó sino da minha aldeia / Dolente na tarde calma / Cada tua badalada / Soa dentro da minha alma». Vencedor em Durban do Queen Victoria Memorial Prize no valor de 7 libras para o melhor ensaio em inglês, o jovem aluno escolhe livros de John Keats, Alfred Tennyson, Ben Johnson e Edgar Allan Poe. Vamos encontrá-lo em 1915 numa divisória sem janela da Leitaria Alentejana do senhor Sengo na Rua Almirante Barroso nº 12. Trabalhava então como correspondente na casa A. Xavier Pinto & Cia ao Campo das Cebolas nº 43 para onde seguia a sua correspondência: Cortes Rodrigues, Mário de Sá-Carneiro e Revista A Águia. Em 23-6-1915 escreve a Cortes Rodrigues um bilhete: «É uma circunstância violenta e aflitiva. V. pode emprestar-me cinco mil réis até ao dia 1 do mês que vem(1 de Julho)?» A sua experiência como jornalista em O Jornal(Crónica da vida que passa) termina abruptamente por causa de um artigo onde se refere aos chauffeurs de Lisboa. A obra de Fernando Pessoa afinal só começou a viver quando o autor morreu no Hospital Francês, em pleno coração do Bairro Alto. São 671 páginas para perceber com Gaspar Simões o «drama em gente» de Fernando Pessoa. (Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: Adolfo Rodriguez Castañé) --

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por José do Carmo Francisco às 14:37

Quinta-feira, 25.09.14

«1961 - o ano horrível de salazar» de antómio luís marinho

A partir de textos da RTP (Telejornal) e de recortes de imprensa (Diário Popular, Avante!, Flama e Século Ilustrado), António Luís Marinho organiza, de Janeiro a Dezembro, a memória do ano de 1961 em Portugal. Neste ano aconteceu de tudo um pouco: guerra em Angola, invasão de Goa, Damão e Diu, golpe de Botelho Moniz, assalto ao navio Santa Maria, desvio de um avião da TAP por Palma Inácio e golpe militar em Beja com morte de Filipe da Fonseca, subsecretário de Estado do Exército. O Mundo mudava mas Salazar em Portugal tudo fazia para que a Sociedade ficasse na mesma. Em África tornaram-se independentes entre 1960 e 1961 muitos países, entre eles: Camarões, Togo, Senegal, Madagáscar, Somália, Congo (belga), Benim, Níger, Burkina Faso, Costa do Marfim, Chade, Congo (francês), Gabão, Mali, Nigéria, Mauritânia e Serra Leoa. O Benfica venceu em 1961 a Taça dos Campeões Europeus (3-2 ao Barcelona) com esta equipa: Costa Pereira. Mário João, Neto, Germano, Ângelo, Cruz, José Augusto, Águas, Santana, Coluna e Cavém. Os jornais de época não puderam dar a notícia de José Dias Coelho, o escultor assassinado pela PIDE em 1961 numa rua de Alcântara mas José Afonso viria a lembrar mais tarde em «A morte saiu à rua num dia assim». O autor do livro não se limita a percorrer textos da TV e dos jornais no ano de 1961. Cita Miguel Torga mas de modo insólito, absurdo e inesperado os seus textos aparecem alterados pelo chamado acordo ortográfico: «atua» e «tática» são duas pérolas. Por fim uma citação de Ruy Belo que dá o toque do tempo e do lugar: «É triste ir pela vida como quem / regressa e entrar humildemente por engano / pela morte dentro.» (Editora: Temas e Debates / Círculo de Leitores, Foto: Martim Dornelas) --

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por José do Carmo Francisco às 16:25

Quarta-feira, 24.09.14

leituras de 2011 - «lugares de passagem» de josé brás

José Brás (n. 1943) recebeu em 1986 com «Vindimas no capim» o prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Neste livro recente são muito diversos os lugares das histórias: «Soeiro-Cunhado, Vila Franca, Montreal, Guiné, Lisboa, New York, Rio de Janeiro, Montemor». O ponto de partida é o lugar onde o narrador descobriu o Mundo: «Terra de vinhas foi aquela onde nasci. Aldeia de homens nados do amor que se faz entre gente e cepas. Aldeia de mulheres-terra. Estremadura-Ribatejo. O pulo sobre a colina. Sobre a barreira. Sobre barreiras. Entre a Vila, Vila Franca e a paveia da seara, tem o Tejo. O Tejo. O rio que se faz de rios. De rios de gente; de rios de suor de gente; o rio que se faz de gente de luta. Alves Redol, varino, avieiro, campino, ceifeiro, ratinho, gaibéu, valador, monda-dôr, pesca-dôr de ser, de ter. De ser e não ter, Vila, rio, rede, pão… Soeiro! Mais rio. Mais terra. E fábrica e povo e fome e luta e grades». Entre a guerra e a morte há o amor: «Passaste a ser meu homem de verdade todos os dias e quando marido visitou, encontrou-me doente porque pediste ao doutor remédio que fingisse eu tomar». Mas o Mundo não é pequeno: «Percebi então que mundo não era assim pequeno como morança de tabanca, como lavra de mancarra, como estrada de Buba, como caminho de batelão para o Bissau, teu mundo era maior que diferença entre tropa branca e tropa guerrilheira, maior que Lisboa, maior que mar de navio para Lisboa e era isso que te trazia tão de raiva contra morte de brancos e de pretos, contra os dias abafados, contra as fomes que vias no povo da tabanca, nos pratos pequenos dos soldados no quartel do Quebo e nas suas mesas de aldeia portuguesa». Na memória interminável da guerra, hoje como ontem, ficam «contando os dias para voltar ao puto». (Edição: Chiado Editora, Capa: Vítor Duarte, Prefácio: António Loja) --

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por José do Carmo Francisco às 10:14

Segunda-feira, 22.09.14

manuel fernandes é muito grande; por mais que tentem não o podem minimizar

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Escrevo na sequência do meu recente texto «Os burros de Benfica no Museu do Sporting» sobre a vergonha que foi para mim ver que no Museu Leonino se dá aceitação a uma monstruosa mentira: alguém sustenta (e o nosso Museu aceita) que o primeiro «derby» SCP/SLB foi em 1907 quando se sabe que o SLB foi fundado em Setembro de 1908. Além da revolta que manifestei como sportinguista que continuo a ser, referi um pormenor muito ofensivo para quem, como eu, trabalhou no (ao tempo 1988-2006) Jornal de Clube mais antigo do Mundo, fundado em 1922. Trata-se da retribuição aos redactores que, como eu, trabalhavam seis dias por semana e que recebiam 350 euros mas havia «conselheiros de história» que recebiam do SCP 2.500 euros por mês. Desta vez trata-se de Manuel Fernandes, o grande capitão, o «Bola de Prata» num ano (1985-1986) em que esse prémio não deu para ir ao México com a chamada selecção nacional. Muitas pessoas dentro do SCP não sabem nem fazem ideia da importância que tem no Universo Sportinguista uma figura como Manuel Fernandes mas eu que o acompanhei em viagens pelo país inteiro, sei do que falo. Uma vez a festa leonina começou ao almoço em Freamunde e acabou ao jantar em Moimenta da Beira com as pessoas nas mesas dos restaurantes a serem impulsionadas por uma espécie de mola sentimental que as fazia saltar da cadeira e aplaudir longamente o ídolo «leonino». Apenas vi de raspão na TV mas percebi logo a grossa asneira que estavam a tentar fazer ao procurar minimizar a sua importância. Estão enganados. Como enganados estão os que por ignorância ou má-fé datam a «formação leonina» do tempo de Figo e Ronaldo. É mentira: César Nascimento e Aurélio Pereira começaram muito antes. Basta pensar no Mário Jorge. --

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por José do Carmo Francisco às 22:29

Segunda-feira, 22.09.14

«os saltimbancos de dadim» de vergílio alberto vieira

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Vergílio Alberto Vieira (n.1950) tem tido desde 1980 uma actividade permanente como poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, tradutor, cronista e autor de literatura infanto-juvenil. Este «Os saltimbancos de Dadim» foi editado em especial para a Semana da Leitura de 3-4-2014 e integra a trilogia «Castelos da Lua» com «O livro da cegonha» e «A noz que não se deixava quebrar». Na história dedicada aos netos do autor (António e Manuel), os saltimbancos que viajam na velha carroça puxada pelo jumentinho são: Alceu (violinista), Chiquitin (arlequim) Filó (argolista), Priscila (bailarina), Félix (malabarista) e D. Beltrão (apresentador). Cabe a D. Beltrão saudar a assistência em nome da Companhia: «Senhoras & cavalheiros / Gentil público em geral / Saltimbancos verdadeiros / Já só nós, em Portugal / Em nome da Companhia / Que me honra apresentar / Beleza, côr e magia - / Trazemos para vos dar!». Para realizar o espectáculo os saltimbancos usam variados adereços: um trampolim, uma bicicleta, rolos, massas, andas, um baloiço de cordas, uma máquina fotográfica antiga com tripé e manga, um cavalete de pintura e um realejo. A acção decorre na praceta local, nos arredores de uma portuguesa cidade de província. Terminada apresentação, os saltimbancos cantam em coro: «Saltimbancos sem fronteira, / Artistas por vocação. / Ricos sem eira nem beira / De tanto dar o coração. / Depois do mundo correr / Onde nos sentimos bem / É entre quem nos quer ver / Dando do pouco que tem. / Por isso, daqui prá frente, / Tomaremos, pois, enfim / O nome da vossa gente / Saltimbancos de Dadim./ Refrão – Nós somos filhos do vento / Não temos terra nem lar / Todo o nosso merecimento / É partir, querendo ficar». (Ilustrações: Nigel Cave, Edição: Associação de Pais e Encarregados de Educação da Escola EB1/JI da Póvoa de Lanhoso – Agrupamento de Escolas Gonçalo Sampaio) --

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por José do Carmo Francisco às 10:29

Domingo, 21.09.14

o canibal das rabacinas

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O rapaz, o canibal das Rabacinas, vinha, como todos nós, no comboio descendente, um «intercidades» a ligar a Covilhã a Lisboa, numa tarde de chuva anunciada que afinal não se concretizou Tejo abaixo. O rapaz vestido de negro lia devagar o «Correio da Manhã» e não entrou em diálogo connosco nem sequer com o nosso interlocutor, apesar das sucessivas possibilidades surgidas na sequência das nossas conversas à volta do grande tema sempre presente na literatura e na sociedade portuguesa «a cidade e as serras». O mesmo é dizer a vida em Lisboa e na Beira Baixa. Chamei-lhe o canibal das Rabacinas porque quis escolher um nome para o sujeito da minha crónica mas na circunstância poderia muito bem ter sido o canibal de Sobral Fernando, da Foz do Cobrão ou dos Maxiais. Mas também poderia ser o canibal da Fróia, de São Pedro do Esteval ou do Perdigão. Tudo isto porque o rapaz se parecia muito com o Adolfo Luxúria Canibal. Mas não cantava nem dizia nada, era um canibal silencioso. Apenas o fato muito escuro e o cabelo demasiado comprido faziam lembrar o outro canibal. O comboio tornou-se um agradável ponto de encontro, houve histórias comuns que foram lembradas trinta anos depois, surgiu uma memória sobre as couves de Valhascos e o ponto alto foi a lembrança de um menino (hoje um reformado) que teve três mães no tempo em que não havia leite em pó para crianças. Mas o canibal das Rabacinas não se pronunciou, não comentou, não participou, ficou-se pelo silêncio, fechou-se na sua roupa preta, na sua pose negativa perante o interlocutor e perante o resto do povo do comboio descendente à beira do Rio Tejo numa tarde a anunciar chuva que afinal não se concretizou. --

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por José do Carmo Francisco às 09:47

Sábado, 20.09.14

de que falamos quando falamos de «cultura»

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Bastou um rápido olhar às páginas de um jornal de Lisboa para me aperceber do estranho uso da palavra «cultura» e do adjectivo «culto» em diversos anúncios do mais diverso teor. Na região de Setúbal procuram um casal de caseiros para uma quinta mas exigem bons conhecimentos de língua inglesa. Alguém com uma menina deficiente para cuidar exige uma pessoa culta, jovem e livre de compromissos familiares para tomar conta da dita menina. Mais à frente é um cavalheiro (são sempre cavalheiros, não sei se já repararam…) que se proclama culto e deseja conhecer uma senhora culta com idade entre 40 e 50 anos para assunto sério. Para não haver empate há uma senhora (são sempre senhoras, não ficam atrás…) que se proclama também culta e procura um senhor entre 60 e 65 anos, igualmente culto e com vida estável para assunto sério. Será tudo isto porque as pessoas se arrepiam com as respostas dos concursos televisivos onde a cultura é bem escassa e os resultados não mentem? Será porque a cultura, como a água potável, é um bem cada vez mais escasso na nossa sociedade? Todas as explicações terão a sua lógica. A relação das pessoas com a cultura é, em geral, complicada. Há anos recebendo eu convites para as diversas exposições da Biblioteca Nacional de Lisboa questionei as pessoas do secretariado para não me tratarem por doutor mas a resposta deixou-me sem resposta: para eles a lógica era outra. Sendo eu amigo do director da Biblioteca Nacional não fazia sentido que não fosse também doutor. Os envelopes continuaram a conter esse título. De nada valeram os meus argumentos em sentido contrário. A lógica venceu a verdade. Não sou doutor mas sou tratado como tal. Afinal uma questão de cultura. --

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por José do Carmo Francisco às 20:30

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