Sexta-feira, 15.08.14
Na linha de antepassados ilustres, Pedro Mexia (n.1972) nestes «Diários 2009-2012» recupera a miscelânea literária tal como já fizeram antes Camilo Castelo Branco («Narcóticos»), Brito Camacho («Pó da estrada»), Irene Lisboa («Esta cidade!»), Ruben A. («Páginas»), Carlos de Oliveira («Aprendiz de feiticeiro») ou Fenando Venâncio («Último minuete em Lisboa») isto sem esquecer os «Tablóides» de José Rodrigues Miguéis no «Diário Popular». Em 1978 Jacinto Baptista, seu director, afirmou-me «O jornalista é o historiador de todos os dias». Julgo ser esse o sentido da intervenção de Pedro Mexia: juntar em livro o que há cem anos se chamava «sueltos». Os jornais foram substituídos pelos «blogs» mas a ideia mantém-se – recuperar do pó do esquecimento os textos que se julga poderem resistir ao tempo e passar à posteridade. As anotações breves partem do olhar sobre o autor («Já sei que de mim nada fica mas não acho a vida menos digna de ser vivida por causa disso»), o seu estado («celibatário é o homem que conseguiu não encontrar uma mulher») e o seu pessoal pessimismo («Ser pessimista é sobretudo cansativo. Todos os dias o mundo confirma a ideia que temos do mundo») mas o foco é a vida em sociedade: «O meu melhor leitor é aquele cavalheiro que um dia me disse: Não me interessa nada a sua vida mas gosto muito do que escreve». Pedro Mexia é um homem de palavras - «Leio num dicionário que «aceitação» é antónimo de «resistência». Talvez por isso tão pouca gente compreenda esta minha atitude que se podia definir como «uma resistência feita de aceitação» ou «uma aceitação feita de resistência». Como tal, não fica indiferente ao chamado «meio literário» e aos seus ridículos dramas numa espécie de Sporting-Benfica («Se lês Pessoa não leias Pascoaes») em que é tudo a fingir: «José Gomes Ferreira escreve no seu diário que Carlos de Oliveira lhe disse que Fernando Namora contou que Álvaro Salema ficou furioso com Ferreira de Castro porque este pediu ajuda a Augusto de Castro». Tudo isto tem a ver com o ficcionista argentino Fogwill: «A literatura não conta uma história, conta como se conta uma história». Pelo meio surge a história com António Lobo Antunes que, depois de autografar um livro («Para Pedro Mexia, porque gostei do seu livro»), numa entrevista a João Céu e Silva diz que não o conhece. Na miscelânea de 374 páginas fica demonstrado o eclectismo de Pedro Mexia que tanto se aventura na dissertação sobre Sófocles como pela revisitação a Kierkegaard. Ou ainda por um olhar sobre a fotografia: «as suas fotografias nunca mostram pessoas porque as pessoas entram nas fotos quando as vêem». Por mim gosto das citações seja da carta de Cesário Verde («Eu não sou nem bom nem generoso como tu julgas») ou de um poema de Raúl de Carvalho: «Vem (serenidade) e defende-me / da traição dos encontros». Um amigo contou-me que começou a ler este livro no Colégio Militar e só parou na Damaia. De Cima, claro. Este volume só pode ser lido em cima, de cima, acima. Porque embora pela sua natureza se integre na vulgaridade quotidiana, ele felizmente não faz parte dessa mesma vulgaridade. (Editora: Tinta-da-China, Capa: Vera Tavares) --
Autoria e outros dados (tags, etc)
por José do Carmo Francisco às 20:03
Sexta-feira, 15.08.14
Mário de Carvalho (n.1944) celebra 30 anos de vida literária neste seu 21º título. Trata-se do regresso às origens – depois do romance e do teatro, volta ao conto. São dez histórias no estilo que o autor afirmou ao longo dos tempos – o máximo de rigor vernáculo na narrativa com a imaginação mais desenfreada nos lances do enredo. São vários os tempos destas histórias. No conto que dá titulo ao volume um grupo de arqueólogos aprisionados é trocado por uma criança («várias culatras a serem puxadas») mas tudo acaba bem: «O que lhe valeu é que os tipos daquele lado também têm amor aos miúdos». Tempo africano. A luta política antes de 1974 surge no conto «A rua dos Remolares» com um cadete-aluno a envolver-se nas actividades clandestinas: «Deixo-te dois cheques assinados. Daqui a uns dias alguém telefona a dizer que é o Eduardo Lopes e a dar-te um endereço no estrangeiro. Memorizas, levantas o dinheiro e remete-lo pelo correio para a morada que for indicada. Não tomes nota. Fixa!» Tempo clandestino. Em «O celacanto» o insólito está presente com o peixe que fugiu da Faculdade de Ciências (velha) onde integrava uma exposição/instalação mas «ao chegar junto à galeria entrou decidido, porta adentro, raspando desajeitadamente a ombreira que ficou com brilho de escamas. Tempo imaginário. Os contos finais passam-se no mundo actual povoado de absurdos (burocracia), de morte (pedofilia) e solidão (divórcio). Em «O cochman» existe um edifício de escritórios onde a portaria deixa entrar o empregado sem cochman («O senhor não está dispensado») mas já não o deixa sair e coloca-o numa sala diferente: «Esta é a única sala que não está ligada à rede de multissom». Tempo absurdo. Africano, clandestino, imaginário e absurdo – são os quatro tempos do livro cuja leitura é um prazer. (Editora: Caminho, Capa: Rui Garrido, Foto: José Carlos Aleixo) --
Autoria e outros dados (tags, etc)
por José do Carmo Francisco às 15:23