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Transporte Sentimental



Terça-feira, 22.07.14

da gravura da livraria ulmeiro a marina tavares dias e áppio sottomayor

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Esta gravura que eu descobri na Livraria Ulmeiro (Avenida do Uruguai) pode ser de uma tourada em Benfica, algures no século XIX mas também pode não ser e apenas uma olisipógrafa como Marina Tavares Dias ou um olisipógrafo como Áppio Sottomayor poderão desfazer as dúvidas. O espaço onde decorre a função parece-me surgir em paralelo à ribeira de Benfica em 1856 ou estrada de Benfica em 1900: o actual traçado de asfalto onde já existiram eléctricos como o 5 para o Carmo e onde correm hoje os autocarros 758, 746, 729 ou 716 seja para Algés seja para as Portas de Benfica. Sem indicação de data nem de autor, fico na especulação sobre a época precisa e concreta da tourada. Parece-me a igreja paroquial de Benfica e há um pormenor curioso: a filarmónica que abrilhanta a função toca debaixo de um toldo que protege os músicos do sol. O único que se identifica bem é o bombardino ou o barítono. No tempo desta gravura circulava uma quadra na qual a rivalidade entre saloios vinha ao de cima: «Cães de Carnide / Cadelas do Lumiar / Acudi aos de Benfica / Que se querem enforcar». Nesse tempo os saloios de Odivelas eram designados por «rapa-caldos», os da Póvoa de Santo Adrião pro «cágados», os da Ameixoeira por «catalões» e os da Charneca por «lobos» ou «ladrões». As rivalidades davam origem a grandes zaragatas nas feiras e romarias mas em geral o saloio era um homem pacato. As touradas, tal como as festas religiosas, eram um intervalo apetecido para quem passava o tempo a trabalhar. E só não ia que estivesse «reles» - a sua maneira curiosa de dizer que está «doente». De qualquer modo é tudo especulação e vou pedir aos dois olisipógrafos ilustres que me ajudem a desvendar o caso. --

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por José do Carmo Francisco às 20:41

Terça-feira, 22.07.14

leituras de 2009 - «outros frutos» de luísa ribeiro

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Organizada em dois capítulos («Outros frutos» e «Intervalo»), esta edição bilingue tem como ponto de partida a voz da solidão («Estou só e ferida») e como ponto de chegada o encontro do amor («tens um coração e dois / olhos como toda a gente mas não sei / o que te reveste de tão puro que ficas / parecido com a lua). Entre a solidão e o amor existe uma distância igual à que distingue a Natureza da Cultura: «não passas do papel / para a ogiva dos meus braços e morro / antes que me encerrem as palavras / numa fábrica de significados / e uma língua de água / me passe perdida no rosto / alucinado». O segundo espaço («Intervalo») organiza-se em prosopoemas e desloca o fulcro dos textos do Corpo para a Casa: «A minha casa é eterna, se eu escrever a minha casa». Essa casa existe perto do mar («Vem da luz do mar aos meus olhos de fera perdida») e situa-se numa ilha: «Assaltam-me piratas na madrugada. Roubam-me da arca os bichos de pelúcia, degolam-me bonecas cegas e rasgam os poemas que te escrevi aos dez anos». Na desordem do Mundo a saída possível está numa peregrinação ao contrário – do Universal para o Local: «Sou peregrina de Compostela à Serreta. Faço descalça qualquer trilho, rumo infinito. Prometo aos pés doidas caminhadas. Guardo num vaso o cabelo rapado. Não evito urtigas, agulhas, espinhos e vou forte prometer a vida. Peço três desejos de águia. No regresso, tomo o caminho do Paraíso». (Editora: DAURO, Prefácio e Tradução: Emílio Ballesteros, Prólogo: Nuno Júdice) --

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por José do Carmo Francisco às 16:23

Segunda-feira, 21.07.14

leituras de 2009 - «folclore íntimo» de valter hugo mãe

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«Entre solidão e perplexidade» – poderia ser este o título desta recolha poética de valter hugo mãe (n. 1971) que engloba 13 anos de labor poético. Um ponto de partida possível é o Eu: «és um rapaz estranho, aí metido num amor nenhum que te magoa e espera ter lugar no mundo». A solidão desse Eu é atravessada pelas memórias de África («as mulheres excisadas alinharam-se perante eles e exigiram a morte») e da Europa: «o meu irmão dizia que havia fantasmas no sótão. eu via-os de encontro às paredes». Perante a perplexidade do Mundo e da Morte («os homens mortos ficam a comer erva pela raiz. vi num sonho») só o Amor surge como resposta: «já reparaste na maneira engraçada como nos deixaram sozinhos. foi propositado. sabem enfim que gosto de ti e que poderemos casar, um dia, quando formos mais velhos». Apesar dos desencontros: «somos cruéis / tão imaturos no amor / que ele acaba por ir-se embora / talvez para nunca mais voltar / perdoa-me helena». A vida («estou no enredo irrevogável da minha vida») não se esgota no quotidiano; há respostas nas artes e nas letras como no dia da morte de Mário Cesariny: «vamos levar-te para o panteão mas não sem antes surrealizar aos gritos os chatos que lá estão / traz mais dinheiro o que tenho hoje não chega para ser feliz / amanhã vendo algo e pago-te». Entre a ameaça da Morte e o precário do Amor, a felicidade é possível: «quem deixou sobre o coração / um feixe de luz / não cega nunca». (Editora: COSMORAMA, Capa: José Rui Teixeira sobre imagens de Nelson d´Aires e Isabel Lhano, Foto: Nélio Paulo) --

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por José do Carmo Francisco às 17:20

Domingo, 20.07.14

segunda carta aberta para fernando venâncio

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Limitada a vinte linhas, muita coisa ficou por dizer na carta anterior. Quando entre 1978 («Diário Popular») e 1981 (Moraes Editores-Círculo de Poesia) muita gente se interessou pelo meu «caso», surgiu uma advertência solene dum colega de trabalho: «Se quer ser alguém nas Letras não perca tempo a escrever sobre os livros dos outros!» Eu tenho feito o contrário e sinto-me como o morcego que é repelido pelos pássaros depois de ser rejeitado pelos ratos. Fui avisado mas insisti. Outra fase tem a ver com a tese de mestrado do Ruy Ventura sobre a minha obra poética. As palavras são de 2001: «Não o ponham tão alto que ele nem é licenciado!» Bastou-me a alegria de ter entrado nas Universidades para pagar propinas e levantar diplomas dos meus filhos (Ana, Filipe. Marta) além de ter entrado depois na Clássica para a dissertação de mestrado do meu filho sobre o Marquês de Alorna (hoje em livro) e na Nova para igual acto do Ruy Ventura sobre a minha poesia – também hoje em livro. Sobre licenciaturas estamos conversados. A terceira frase deve ser de 1993 e pertence a Fernando Venâncio, ele mesmo, quando escreveu no «JL» que o «Transporte Sentimental» é um livro «esplêndido» e ignorá-lo pode ter sido um «erro desta cega geração». A mesma cegueira que levou a geração da segunda metade do século XIX a considerar Cláudio Nunes mais importante que Cesário Verde. O tempo provou o contrário. Hoje Cláudio Nunes é nome de rua em Benfica e foi juiz da Irmandade do Santíssimo na paróquia mas poeta no tempo e para todo o tempo é Cesário Verde. Uma nota final para sublinhar que o nome deste Blog é o mesmo do livro que Fernando Venâncio considerou «esplêndido» em 1993. E tal como na fotografia continuamos todos juntos. Ninguém saiu dessa fotografia tirada na Trindade. --

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por José do Carmo Francisco às 10:26

Sábado, 19.07.14

carta aberta ao escritor fernando venâncio

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Poderia chamar-lhe carta «sincera» como a que um dia Luiz Pacheco escreveu a José Gomes Ferreira mas, como tudo em mim é sincero, seria uma redundância. Evito as redundâncias e escrevo em jornais e revistas desde 1978. Comecei no «Diário Popular», meu mestre foi Jacinto Baptista. Pois o meu estimado Fernando Venâncio (ontem muito falado na FNAC Colombo por Tiago Salazar e Nuno Costa Santos) advertiu-me para o uso da expressão «português pataxó». Ora os pataxós não têm culpa do aborto ortográfico e a frase pode ser vista como infeliz. Como infeliz terá sido a expressão «mais tadinho que tadeia» a propósito dum comentador de TV ou a frase «dois selvagens ao piano» por umas palermices sobre floristas. Aceito mas também existe o outro lado. Os pataxós nunca falarão português. Mais do que uma impossibilidade, trata-se dum absurdo. É como perceber que, quando um Africano atravessa o Alto da Faia e provoca uma confusão de trânsito com apitos, travagens bruscas e insultos, o que está em causa é que no seu país não existem semáforos nem passadeiras. Ele atravessa onde lhe dá mais jeito. Nasci em 1951, estou a envelhecer e não guardo rancores. Tenho uma reforma pequena porque entre 1976 e 1996 fui promovido quatro vezes quando poderia ter sido seis ou sete. Havia os retornado que era preciso retirar do Rossio «custe o que custar e doa a quem doer». Muitos deles nem bancários eram mas foram promovidos como estímulo e nós ficámos a marcar passo. Hoje festejo a chegada de 175 euros como se fossem 175 mil (obrigado Maria José!) mas não guardo rancor a ninguém. E quando chamo Pasteleiro ao senhor do aborto ortográfico é porque ouvi a piada na livraria Bocage - que já não existe. Tal como eu dentro de pouco tempo. Os ilhéus de Langerhans não me dão descanso. --

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por José do Carmo Francisco às 14:40

Sexta-feira, 18.07.14

eduardo gageiro - pequeno ensaio para uma despedida

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A fotografia de Eduardo Gageiro (n.1935) vista por mim em 1 de Julho passado no Fórum Romeu Correia em Almada na exposição intitulada «40 fotos nos 40 anos do 25 de Abril» entrou no meu registo sentimental interior e já não sai. Na foto apenas as escadas que dão acesso ao navio se identificam na sigla «AGPL» Administração Geral do Porto de Lisboa. Tudo o mais tem o peso do anonimato desde as centenas de soldados já no navio fretado pelo Estado- Maior do Exército ao guarda-fiscal que assiste, impávido, à sinfonia de morte anunciada entre o coro a caminho de África e o cais de pedra ode um homem só, sentado num triciclo, um homem sem dúvidas deficiente, talvez cauteleiro ou vendedor de jornais, dá início a uma poderosa acumulação de lágrimas. Havia um homem assim, com um triciclo puxado à mão em vez de movido a pedais, havia um homem triste que vendia jornais ali ao Largo do Rato, no espaço central onde todos os eléctricos paravam para trocar os cestos de verga com o almoço dos guarda-freio e dos cobradores. Eram o 5, o 24, o 21 e o 22, o 25 e o 26, o 29 e o 30. Este homem, hoje anónimo, é todos os pais portugueses que viram partir os seus filhos com lenços brancos de adeus e os receberam em caixas de pinho com funerais pagos pela família a meio da comissão. Morreram pela pátria mas morreram e eles não queriam morrer; queriam, isso sim, cumprir todos os sonhos ou os projectos de sonhos que a guerra soterrou nas picadas de África e nas emboscadas do silêncio. Tudo isto está em resumo na fotografia de Eduardo Gageiro. O instante da angústia a rebentar, a abertura para o primeiro andamento da sinfonia de morte no cais de pedra com o olhar do guarda-fiscal a servir de agrafe humano entre duas lágrimas gigantes como o absurdo da guerra. Duas lágrimas invisíveis mas ruidosas. --

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por José do Carmo Francisco às 08:07

Quinta-feira, 17.07.14

leituras de 2009 - «meu brasil brasileiro» de duda guennes

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O jornalista Duda Guennes (Recife, 1937) viveu em Portugal desde 1974 e escreveu em A BOLA desde 1980 o «Meu Brasil Brasileiro». Ali cabiam «crónicas, causos, estórias, factos, fofocas e acontecências» como esta curiosa definição de árbitro de Armando Nogueira: «O árbitro de futebol é o único ladrão que rouba a gente na presença de milhares de pessoas e ainda vai para casa protegido pela polícia». José Miguel Wisnick afirma que «A arte do amor, como a do futebol, é abrir espaços onde não há» e Rubem Braga testemunha que um dos maiores prazeres da vida é «Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro». Garrincha respondeu uma vez a um director que lhe chamou boémio por frequentar boates - «O senhor também já foi visto várias vezes em velório e não é defunto». Roberto Pásqua, presidente do Corinthians disse em 1985 - «Se minha vida particular atrapalhar o Corinthians, abandono a vida particular». Eurico Miranda, presidente do Vasco da Gama afirmou sobre a corrupção - «Ética é coisa de filósofo». Dissertando sobre a estética do futebol, o jogador Dadá Maravilha afirmou - «Não existe golo feio. Feio é não fazer golo». Garrincha, farto de levar pontapés do chileno Eulálio Rojas no Mundial de 1962, gritou esta maldição - «Olha aí, ó panasca, vocês chilenos não jogam nada. O Chile só é bom em terramoto e mesmo assim perde para o Peru». Por fim um clássico: o médio Ananias antes de um Náutico-Santa Cruz no Recife disse - «Só faço prognóstico no final do jogo». (Editora: Prime Books, Capa: Luís Afonso, Apresentação: Vítor Serpa, Prefácio: José Carlos de Vasconcelos) --

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por José do Carmo Francisco às 09:33

Quarta-feira, 16.07.14

caricatura de aniceto carmona + uma advertência + um pedido

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Ontem estive numa estação dos CTT e reparei num caso insólito. Há um livro à venda cujo título é «Quero ser arquitecto», se destina a crianças e é editado em Santa Comba Dão por «Edições convite à música». Pois esse livro tem um problema grave. A página 10 aparece duas vezes, está repetida. Ninguém viu nem reparou. Quem compra este objecto na pressa e na boa vontade de o oferecer a alguém leva duas páginas 10 e não leva a página 9 que não se sabe o que diz. Cuidado com esse livro; eu, na estação dos CTT onde estava, entreguei o exemplar defeituoso no balcão e a funcionária agradeceu o alerta. Ontem comprei num alfarrabista o livro «Coimbra de capa e batina» de Carminé Nobre. De Coimbra tenho vários livros da Académica graças ao meu amigo José Fernandes Fafe, tenho livros do Trindade Coelho, do Pad´ Zé, do Mata Carochas, do Armando Sampaio e do António Curado mas este «Coimbra de capa e batina» tem um problema, faltam-lhe as páginas 13 e 14 pois salta da 12 para a 15. Se alguém que me ler tiver o livro ou souber de quem o tem, agradeço um contacto para o Blog pois muito gostava de ter as páginas 13 e 14 ao menos em fotocópia. Tenho uma enorme curiosidade em saber o que está escrito nessas páginas. O meu interesse por Coimbra não é de agora. No meu livro «Os guarda-redes morrem ao Domingo» existe uma crónica sobre a Académica e sobre o facto de haver uma Académica em cada ilha de Cabo Verde sem esquecer uma Académica no Luxemburgo, por exemplo. O insólito é relativo pois pode-se ser da Académica sem nunca ter estudado em Coimbra. Como jornalista fui muitas vezes a Coimbra com as equipas juvenis do Sporting; uma vez o jogo foi em Mortágua porque os «capas negras» estavam castigados mas isso é outra conversa. --

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por José do Carmo Francisco às 18:51

Quarta-feira, 16.07.14

novas leituras de 2009 - «crepúsculo» de teixeira de pascoaes

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Teixeira de Pascoaes (1877-1952) foi vítima, enquanto poeta, de uma espécie de «Sporting-Benfica» na literatura portuguesa: «Se lês Pessoa não leias Pascoaes». Quem lê Pessoa deve ler Pascoaes e Sophia e Herberto e Carlos de Oliveira e Ruy Belo e Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. Não há Sporting-Benfica em literatura. Este volume recolhe três livros publicados em 1924/1925 por Guilherme de Faria: Elegia do Amor, Sonetos e Londres. O mentor do Saudosismo («a religião da saudade») abre deste modo a Elegia do Amor: «Lembras-te, meu amor / Das tardes outonais / Em que íamos os dois / Sozinhos, passear / Para longe do povo / Alegre e dos casais / Onde só Deus pudesse /Ouvir-nos conversar?» Mas já os Sonetos entram em contradição; vejamos o início do poema Amor: «Para que foi, Senhor, que ao mundo vim / Se eu hei-de, nesta vida, amar somente / A mais sequinha flor do meu jardim / E o bailado das sombras do poente?» Já no livro Londres (dedicado a Aubrey Bell) a viagem na cidade inglesa (Trafalgar, Westminster, Hide Park) termina sempre na portuguesa saudade: «Tudo é saudade… E aqui, debaixo deste Azul / Que a tristeza em feições quiméricas dilata / Evoco dolorido o meu País do sul / Lá, onde é oiro o sol que, neste céu, é prata». (Editora: Cosmorama, Prefácio/Organização: José Rui Teixeira, Capa: sobre desenho de Carlos Carneiro, Apoio: Câmara Municipal de Amarante) --

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por José do Carmo Francisco às 07:32

Terça-feira, 15.07.14

«alfacinhas» de alfredo de mesquita

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Alfredo de Mesquita (1871-1931) publicou este livro em 1910 mas, passado um século, a escrita límpida deste olisipógrafo natural de Angra do Heroísmo mantém a sua eficácia. Lembra um tempo mas também um estilo: «Um bombeiro era sempre um benemérito, um professor de instrução primária sempre uma vítima, uma sogra sempre uma fera». As crónicas deste livro são um intervalo feliz entre o poema e o conto, o ensaio sociológico e a antropologia, a memória e o esquecimento mas para o autor o Jornalismo é uma disciplina da Literatura: «Todos querem ser mais do que podem e parecer mais do que são. Ser ambicioso nem sempre é mau; mas a ambição assim é desvario. A literatura desvairou também.» Os textos do livro são anteriores à República; daí o Rei no Parlamento: «O que o governo não puder fazer para bem da Nação há-de fazê-lo a Divina Providência. O povo confia.» A política («governos, partidos, oposições, blocos, maiorias, coligações«) é uma excelente ocasião para lembrar a importância social da filarmónica: «É a dos regeneradores ou é a dos progressistas? É a filarmónica! A política pode ter música mas a música não tem política.» O ponto de partida é a janela; seja a janela da cidade («Há janelas de Lisboa que são jardins, outras que são quintais») seja a janela do cronista: «Desta larga janela rasgada de par em par, por onde a vista me foge». Cada crónica é um «passeio sem destino e sem horas». Tanto pode ser a Benfica («Em menos de duas horas chegava o carro a Benfica») como a Veneza: «Veneza é triste mas não há realidade que mais lembre o sonho». Tanto pode ser de ónibus («Faziam parte integrante do ónibus o cocheiro e o condutor, duas criaturas em tudo opostas») como a pé nas ruas de Lisboa, pronto a encontrar honestos saloios («roupa lavada, vinho, pão, queijo, ovos, manteiga, água») como vigaristas: «O charlatão tornou-se pessoa respeitável. Ele não é um profeta: é um positivista. Ele não é um apóstolo: é um comerciante. Ele não é um maluco: é um homem de juízo. Ele não é um dissidente: é um oportunista.» As ruas são um Mundo onde se cruzam os gatos («Feixe de nervos, magro, o pelo curto, a unha rija, o estômago de ferro, a espinha de aço, o olho temerário») e as criadas («Os tempos mudam e tudo muda com os tempos: pois também a criada muito tem mudado»), os automóveis das viagens de núpcias («os noivos estão arrependidos de tanta pressa terem tido em casar») e também os seus namoros em São Pedro de Alcântara: «Donde era? – De Bixeu… arredada duas léguas… - Ena, que longe! – considerava ele. E como era longe, chegava-se mais para ela – para que ficasse mais perto.» Em 144 páginas o autor não esquece a adversativa da senhora de boa sociedade que em 1880 perguntou: «Mas afinal ele era realmente Camões ou chamavam-lhe assim por ser cego de um olho?». «O povo em Portugal é ainda tão ignorante como a senhora de boa sociedade a quem se atribui esta raia» - conclui Alfredo de Mesquita. (Edição: VEGA, Direcção: Carlos Consiglieri, Capa: Luís Eme, Apoio: CML-Cultura, Editor: Assírio Bacelar) --

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por José do Carmo Francisco às 09:31



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