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Transporte Sentimental



Sábado, 03.11.12

albino moura na galeria allarts ao chiado

Image.jpg

Dissertação sobre as «Vendedeiras de Lisboa» de Albino Moura
Na cidade antiga, entre a guerra no Castelo, a água no Aqueduto e a oração na
Sé, um alvoroço de vozes, de movimentos e de gente à janela registava a chegada
da vendedeira.
Fava rica!, vivinha da Costa!, figuinhos de capa rôta!, olha a bela castanha
assada! – eram estes alguns dos gritos cantados pelas ruas da cidade.
Serão estes, os da castanha assada, entre fumo e sal, os herdeiros actuais dos
velhos pregões de Lisboa.
Hoje o comércio mudou e já nem o padeiro bate à porta. Nem o ardina que ao fim
da tarde fazia prodígios de pontaria para acertar nas varandas dos segundos
andares da minha Travessa do Caldeira, ali à Rua Fernandes Tomás.
Esta pintura é, na sua composição, com a mulher no centro da guerra, da água e
da oração, uma memória de um tempo hoje perdido no escuro do esquecimento. As
vendedeiras já não cantam os seus pregões nas ruas da cidade. Nas grandes
superfícies há prateleiras repletas de novidades vindas do estrangeiro.
Estas mulheres maduras como as maçãs que parecem trazer nas vozes que cantam e
esta menina de branco, branco ainda não maculado pelos desgostos e pela
amargura dos dias, povoam uma paisagem que parece imóvel. A Sé, o Aqueduto e o
Castelo, juntam-se na simetria do quadro mas não participam do movimento. São
referências mas não entram no quotidiano labor de pregão e venda, sempre ao
sabor dos azares do dia. Eles (Castelo, Aqueduto e Sé) são o mundo que
permanece num quadro em permanente mutação.
Estas mulheres sabem que o tempo não se detém nunca porque a pintura é outra
coisa – como uma oração, ela junta de novo tudo aquilo que o tempo
separou.
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 18:42

Sábado, 03.11.12

outras leituras de 2007

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«A mulata do engenheiro» de Inácio Rebelo de Andrade

Poderia chamar-se «O futuro não estava lá» porque esta narrativa de 315 páginas
tem essa conclusão: trata-se de um logro, uma ilusão, uma mentira. Carolina,
menina nascida em Angola, filha de um branco e de uma negra, andava de olhos
abertos mas não via. No Colégio de Nova Lisboa as criadas e as serventes eram
negras; as professoras eram brancas. Na missa dominical os brancos ficavam nas
filas da frente e os negros nas filas de trás. Na estação de comboios a caminho
da fronteira com o Catanga (ao tempo belga) via as carruagens com bancos
estofados para os passageiros brancos e bancos de ripas para os negros. Nem uma
prolongada estadia em Lisboa onde frequentou a Universidade e onde conheceu o
marido afastou da sua mente a ingenuidade de pensar que em Angola era possível
uma convivência cordial entre brancos e negros. Foi preciso um empregado do
Clube da Companhia de Caminhos-de-ferro de Benguela adverti-la de modo brutal
para descobrir essa verdade: «A senhora não pode nadar aqui. Esta piscina é só
para brancos. Faça o favor de sair!» O episódio da piscina provoca na
protagonista uma amarga reflexão: «Tão segura das suas certezas, com tantas
leituras, com tantos estudos, porque ignorara até esse dia que na sua terra,
onde nascera meio-branca, meio-negra, os brancos mandavam porque eram brancos e
os negros obedeciam porque eram negros?» Obrigada a regressar a Lisboa por não
suportar o ambiente hostil da sua terra, Carolina percebe que está condenada a
viver entre duas terras, entre dois mundos, entre dois universos. Viaja no
paquete Príncipe Perfeito em Novembro de 1959 do Lobita para Lisboa mas sabe
que o seu futuro não está em Lisboa tal como não estava em Angola.
(Editora: Novo Imbondeiro, Capa: Francisco Amorim)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 12:04

Sexta-feira, 02.11.12

outras leituras de 2007

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«D. Afonso Henriques» por José Mattoso

Este livro é dedicado a Luís Kruz pois foi este investigador (entretanto
falecido) o primeiro convidado a escrever a biografia de D. Afonso
Henriques. José Mattoso (Leiria, 1933) escreveu grande parte do original em
Timor tendo completado o trabalho já em Portugal. O ponto de partida não é
fácil pois existem já muitas «biografias» do nosso primeiro rei escritas
por Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Gonzaga de Azevedo e Torquato
Soares. Mas há outras dificuldades, explica o autor, além da escassez de
documentos: «O facto de ter sido ele o criador do Estado imprime-lhe um
sentido que transcende a sua personalidade individual. Não se pode falar
dele sem, desde logo, procurar na sua existência os sinais que o projectam
para lá da sua época, não só como rei mas também como fundador da
monarquia.» E conclui: «quando se quer separar o mito da história, fica-se
reduzido a muito pouco. Sem o mito, o passado aparece como um poço vazio.»
José Mattoso explica que o rei não estava sozinho: teve auxiliares tão
importantes como São Teotónio, D. João Peculiar, Egas Moniz, Ermígio Moniz,
Fernão Cativo, Gonçalo Mendes de Sousa e Vasco Sanches, entre outros.
Este volume de 318 páginas lê-se com o interesse dum romance. Por exemplo
quando descreve o casamento do rei ou as ligações aos monges de São
Bernardo: «Alcobaça tornou-se um dos dois mosteiros mais ricos e com maior
influência cultural e política do reino, a par de Santa Cruz de Coimbra. A
sua projecção plena, todavia, só se verificou depois da morte de Afonso
Henriques. Mas o rei deve ter previsto a importância que os mosteiros
cistercienses, sobretudo Alcobaça, viriam a ter em Portugal, como se pode
deduzir da protecção que lhes concedeu.»
(Edição: Círculo de Leitores, Capa/Design Gráfico: Rochinha Diogo)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 22:17

Sexta-feira, 02.11.12

outras leituras de 2007

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«O bosque cintilante» de Amadeu Baptista

Premiado com o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007 das Juntas de
Freguesia de Azeitão (São Lourenço e São Simão), este livro organiza-se de modo
a que cada poema tenha por título uma peça musical. Por exemplo a «Marcha
militar» de Schubert antecede este poema (excerto):
«Os que nela desfilam são soldadinhos de chumbo / para melómanos / que marcham
ordeira mas puerilmente / jamais deram um tiro / e a única coisa que mataram /
foi a fome de um compositor / por acaso austríaco, por acaso desinteressado do
império militar / da Áustria triunfante.»
Ouvi no leitor de CDs um minueto de Beethoven pode ser um programa de vida:
«Escuta, toca a terra, recebe do fascínio / o que é imperceptível e
momentaneamente / é nítido e perfeito, sob a leveza / surge para que algo
renasça, vivifique, avance. / Adere ao que conheces e ignoras / A música da
sombra e do prodígio.»
A marcha triunfal da «Aida» de Verdi conduz a uma reflexão:
«Há quem chame milagre a isto de estar vivo. / Há quem passe pela vida e jamais
acredite / Há quem não tenha fé ou simplesmente a use / para exorcizar os medos
soterrados / sobre outros medos sempre inconfessáveis / com esse rosto terrível
de não terem rosto.»
Livro pleno de maturidade dum poeta cujo percurso se iniciou em 1982 com «As
passagens secretas», neste «Bosque cintilante» apetece fica perdido entre o som
das músicas e a viagem das palavras. O mesmo é dizer entre «sombra e prodígio».

(Edição: Juntas de Freguesia São Lourenço e São Simão, Capa: Rogério Ribeiro,
Apoios: Câmara Municipal de Setúbal e Associação Cultural Sebastião da Gama)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 22:13

Sexta-feira, 02.11.12

não é um caso de vida ou de morte, é muito mais do que isso

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Os gatos de Ruslam Botiev e de Manuel António Pina
Ruslam Bootiev, escultor e pintor, veio da Mongólia para Portugal e, depois
de muito frio e muita chuva nas ruas de Lisboa, fixou-se como artista
residente na Livraria Sá da Costa ao Chiado. Tem um espaço próprio onde
pinta e dialoga com os futuros compradores dos seus trabalhos. Estes gatos
pretos de Ruslam Botiev lembram os gatos de Fernando Pessoa mas sem
esquecer os de Fialho de Almeida. O inevitável eléctrico «28» que passa
aqui em frente a abarrotar de turistas, também aparece nos seus quadros mas
hoje fiquemos pelos gatos. Para fazer a ponte com os gatos de Manuel
António Pina (1944-2012), o poeta que tinha uma dúzia de gatos (eram
treze!) na sua casa do Porto. A gata Pipas, a decana, chegou em 1985. A
paixão do poeta pelos gatos surge num poema de 2004:
«Há um deus único e secreto
Em cada gato concreto
Governando um mundo efémero
Onde estamos de passagem.
Um deus que nos hospeda
Nos seus vastos aposentos
De olhos, músculos, movimentos.
E de longe nos observa.
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
E, compassivo, o deus
Permite que o sirvamos,
E a ilusão de que o tocamos.»
No livro «Dito em voz alta», da editora Pé de Página, colectânea de
entrevistas da MAP com apresentação de Inês Fonseca Santos, surge na página
26 a seguinte frase: «Como Bobby Robson disse do futebol, a poesia não é
uma questão de vida ou de morte, é muito mais importante do que isso.» Ora
o autor dessa frase é Bill Shankly (1913-1981), jogador originário do
Preston North End e depois treinador que levou o Liverpool da segunda à
primeira divisão em 1959 e, em 783 jogos, venceu 3 vezes a I Liga inglesa,
2 Taças de Inglaterra e 4 Supertaças.
A frase de Bill Shankly é a seguinte: «Some people believe football is a
matter of life and death, I am very disappointed with that attitude. I can
assure you it is much, much more than that.» Em versão livre a frase de
Bill Shankly e não de Bobby Robson será assim: «Algumas pessoas acreditam
que o futebol é um caso de vida ou de morte. Estou muito desiludido com
essa atitude. Posso garantir que é muito, muito mais do que isso».
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 18:25

Quinta-feira, 01.11.12

dissertação para uma fotografia do museu de coruche

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Casas pequenas e histórias antigas (foto Arquivo Fotográfico Municipal
-Coruche)
Ficaram-me os olhos nesta fotografia que trouxe do Museu Municipal de
Coruche. Com a passagem do tempo todos nós tendemos a ter menos coisas,
mais memórias, casas mais pequenas, menos ambições. Este conjunto de casas
lembra-me a Rua Sacadura Cabral no Montijo onde vivi entre de 1957 a 1960 e
onde fiz parte da Escola Primária. Ao fim da rua havia uma malhada e mais à
frente o campo Luís Almeida Fidalgo onde ao Domingo à tarde jogava o Grupo
Desportivo do Montijo. Casas pequenas eram rendas pequenas: pagavam as
pessoas 60 escudos por mês. Em destaque na casa a forte presença da
lareira, lugar do lume com as suas histórias e lugar do acto de cozinhar
para a sobrevivência diária. Inesquecível desse tempo é a sopa chamada de
«misturadas» com couves e batatas, feijão e arroz; ainda mais saborosa
quando um osso saía da salgadeira para dar um certo e especial sabor ao
caldo.
Nas matanças do porco, sempre no tempo do frio por causa das moscas que o
Inverno não aceita, minha avó de Santa Catarina contava histórias antigas
mas a moral era para o tempo actual. Havia um homem rico mas garganeiro que
tinha uma loja e criados. No tempo da fome (ou seja, da guerra) ia o homem
com as suas carroças e os seus machos à procura de feitores que vendessem
azeite. Quando o comprador distraía o feitor com paleio e, ao mesmo tempo,
os criados se dispunham a passar o azeite das talhas do homem para as da
carroça do patrão, um deles gritava que estava ali um gato morto. Mesmo que
o feitor dissesse que não podia ser o gato lá estava, trazido num saco por
um dos criados do comprador. Com a recusa do negócio lá baixava o homem o
preço do azeite e assim o outro ia fazendo fortuna. Dizia a minha avó que
nem o Diabo o quis no Inferno; ficou uma alma penada. Era a melhor história
da lareira.
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 20:59

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