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Transporte Sentimental



Domingo, 11.11.12

a casa da barroca entre a água e o pinhal

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Dissertação para uma casa esquecida na Atalaia da Barroca A vida é um mistério, não é um negócio. Pode ser que a casa não tenha valor nem cotação nos sites das empresas do ramo – compra, venda e hipoteca de propriedades rurais. Pode ser que ninguém nela tenha reparado, ainda mais a seguir aos grandes incêndios de 2006 quando os barrotes do telhado arderam e ficaram só as paredes. Mas não ficaram só as paredes da casa entre a estrada de pó e a água da ribeira que já não se contém em levadas para os moínhos de onde saía o pão de todas as semanas. Quando esse pão chegava aos oito dias ficava duro e só se podia comer com o café bem quente nas tijelas de barro. Eram as migas de pão de milho com um café escuro que subia veloz na cafeteira grande e só parava quando a grande brasa vermelha era atirada lá para dentro. No tempo desta casa as horas passavam lentas, o cantar do galo rompia a manhã, o lume acendia-se cedo, a sopa podia demorara quatro horas a fazer. Na passagem do Verão as camisas velhas do pai davam origem a camisas novas para os filhos com os colarinhos a parecerem quase novos pois eram tirados dos punhos. Ao lado da casa hoje esquecida havia um celeiro e um curral. A junta de bois lavrava as terras entre a caruma do pinhal e as pedras dos muros da ribeira. Mas um dia, para que um dos filhos pudesse ser operado num Hospital de Lisboa, o pai vendeu a junta de bois numa feira de gado e só assim o presidente da Câmara Municipal pôde assinar um documento para a direcção do Hospital não cobrar a intervenção cirúrgica. Hoje, setenta anos depois, um dos seus bisnetos percorre os corredores de um outro Hospital de Lisboa e dirige-se ao Armazém para responder a um pedido urgente de um cirurgião do seu grupo hospitalar e já ninguém se lembra da junta de bois vendida na feira de gado da Sobreira Formosa. Entre os dois tempos e os dois lugares, apenas a casa, suas paredes brancas, hoje sem o telhado ardido nos incêndios de 2006. Apenas a casa testemunha essa memória de um tempo onde a junta de bois servia de limite a ter ou não ter posses para pagar uma intervenção cirúrgica num Hospital de Lisboa. Quem souber ouvir com atenção ainda hoje sabe que das pedras da ribeira sobe até à casa o som das canções mais ingénuas dum certo tempo português - «Teodoro leva-me ao sonoro!». Quem souber ver com atenção verá que ainda hoje estão atrás das pedras da ribeira os bocados de sabão azul de cada mulher e de cada rapariga desta pequena aldeia. Está tudo lá porque a vida é um mistério, não é um negócio. José do Carmo Francisco --

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por José do Carmo Francisco às 22:36


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