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Transporte Sentimental



Quarta-feira, 10.10.12

outra leitura de 2007

05.jpg

«Os burros» de Cândido Ferreira

A partir do convite da Central FM de Leiria, o médico Cândido Ferreira,
especialista em Nefrologia e criador do primeiro centro privado de hemodiálise
da região, orgulhando-se de, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde,
esta ser uma valência em que no distrito de Leiria nunca houve listas de
espera, nunca mais parou. A crónica para a rádio ou para os jornais é um
bichinho que nunca mais larga quem por ele se deixa morder. Este livro é um
resultado dessa mordedura. Vejamos parte de uma das crónicas intitulada «Vozes
de burro»: «Enquanto o segundo doente não chega mando entrar outro, VM de seu
nome, residente bem longe de Leiria, no sul do distrito. Com um adesivo
malcheiroso a pender do nariz ensanguentado, o seu estado clínico é deplorável,
não deixando margem para dúvidas sobre a urgência em iniciar hemodiálise. Havia
marcado a sua primeira consulta na quarta-feira anterior e até poderia ter sido
observado logo no dia seguinte, numa outra clínica equivalente, pertinho da sua
casa em Caldas da Rainha. Só que, apesar dessas instalações estarem prontas e
acabadas há mais de seis anos – e já agora, acrescente-se, cinco governos
e três ministros – ainda não foi dada resposta aos insistentes pedidos
para um acordo com o SNS. Para o Ministério da Saúde novas convenções, por
enquanto não, muito obrigado. Nem a preço de saldo e com pagamento a perder de
vista. Quem quiser consultar-se que vá passear até Leiria ou até Lisboa à custa
do erário, que isso do défice é uma treta e o Zé Pagode pode muito bem pagar
balúrdios em transportes. Vá lá alguém em seu juízo perfeito entender que
administração pública é esta!...»
(Editora – Padrões Culturais, Capa – Mário Andrade sobre quadros de
Fátima Madruga)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 22:04

Quarta-feira, 10.10.12

terceira classe era nos comboios antigamente

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A propósito das férias ou um outro olhar do Norte sobre o Sul
Nada como o tempo das férias para se perceber a plena disfunção, o altivo
desdém, o alheamento às vezes agressivo que se exprime no olhar da gente do
Norte da Europa sobre a gente do Sul. Nisto, como em tudo na vida, é nos
pequenos pormenores que se registam as grandes diferenças. Estou sentado no
sofá de uma sala de uma casa numa aldeia perdida do Interior. A esposa do dono
da casa é francesa e deixou escrito um conjunto de indicações para ligar a
televisão. Tudo bem? Não! Tudo mal. Porque as instruções estão em francês e,
das duas hipóteses vale uma: ou ela só pensou na sua pessoa quando redigiu as
normas para abrir a televisão (e é egoísta) ou ela pensou que todo os outros
que frequentam a casa sabem ler francês (e é estúpida). Muitos franceses julgam
que o centro do Mundo é a França. Mas é mentira.
Aqui não é acintoso o olhar da criança mas antes uma surpresa. Na Grã-Bretanha
os tios afastados não aparecem para petiscarem nos lanches ajantarados; por
isso a criança percebe a diferença entre família alargada e família nuclear.
Como foi o caso destes tios onde até havia um a dizer a palavra «table» à
francesa. Enfim… Tomás, criança de 6 anos, luso-britânico que vive em
Londres, pergunta ao ver um grupo de tios a comer na casa do avô: «Estas
pessoas fazem parte da família nuclear?»
Os franceses que vivem no segundo andar do prédio vizinho pagam sempre a renda
mas omitiram o correio acumulado em dois anos. Algumas das cartas até tinham
aviso de recepção e os carteiros nunca questionaram ao verem pessoas tão
simpáticas. Mas para eles o correio dos donos da casa era uma coisa
irrelevante. Havia no seu olhar uma indiferença activa, um desdém superior,
enfim a distância de Paris a Lisboa é talvez de 2 mil quilómetros mas para esta
gente os portugueses valem tanto com os pobres argelinos, marroquinos ou
tunisinos. O seu correio, tal como o seu país e a sua pessoa, nada disso
interessa.
Outro caso é o do arquitecto suíço que fala alemão. Veio ele morar para uma
cidade no nosso Sul. Comprou uma casa e, passado pouco tempo, apresentou um
projecto de alterações. Na Câmara Municipal respectiva o «dossier» referia o
rés-do-chão da casa como espaço de «uso próprio» mas a arquitecta da autarquia
percebeu o logro. Ela ia tomar a bica muitas vezes a esse espaço e sabia que as
pessoas pagavam renda à dona da casa. «Uso próprio? Nem pensar!» Em Marrocos,
na Tunísia ou na Argélia talvez o senhor arquitecto pudesse fazer o que
quisesse mas aqui, neste velho país, não pode ser a lei do «por aqui me sirvo».
Isto aqui não é o da Joana. Numa altura em que tanto se fala da Europa, da
moeda europeia, da coesão europeia, da crise europeia, estes incidentes servem
para mostrar como há problemas que nunca chegam às páginas dos jornais. A
propósito veja-me como o jornal inglês «Sun» referiu a morte de 96 pessoas em
15-4-89 no jogo Liverpool-Nottingham Forest em Hillsborough Park dando eco às
mentiras de Margaret Thatcher. A gente do Norte da Europa não pode olhar para
nós como pessoas de segunda classe. Ou terceira. Isso era nos comboios de
antigamente. José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 20:08

Terça-feira, 09.10.12

uma marcha fúnebre para o bairro alto

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Vinte Linhas 831
A música da Cruz Quebrada na procissão de São Roque
Pode ter sido a última. No passado dia 7 realizou-se a procissão de São
Roque. Descendo pela Rua da Misericórdia, o cortejo seguiu pela Rua do
Loreto, Rua da Atalaia e voltou pela Travessa da Queimada. O andor viajou
com os Bombeiros de Sacavém, à frente do pálio e atrás das diversas
bandeiras, pendões e estandartes. Seis elementos da GNR do Carmo fizeram
guarda-de-honra. A Banda da Sociedade de Instrução Musical Escolar Cruz
Quebradense tocou a marcha grave intitulada «Hino da Paz». Indiferente ao
acto, à emoção colectiva e a algumas lágrimas teimosas, o meu neto Pedro
empurrava o seu carrinho de bebé. Ele não sabe que esta pode ter sido a
última procissão. Seu pai (1981) e suas tias (1978, 1985) nasceram no BA,
aqui foram à escola e à catequese, aqui fizeram licenciaturas e mestrados
mas foram obrigados a partir para longe do Bairro e até do País. Pode ter
sido a última. O sonho dos vereadores da CML é acabarem com a vida dos
residentes do BA, transformando este espaço numa réplica dos bairros pobres
de Bangkok onde só há bares e restaurantes e o turismo sexual floresce.
Afastados os filhos dos residentes, só falta acabar com a vida dos actuais
moradores. Repetem o que estão a fazer com a Feira da Luz: todos os anos há
menos feirantes e, quando não houver feira, vamos todos comprar as coisas a
um hipermercado. O meu neto Pedro aponta a tuba que brilha ao sol e sorri
para o músico. Quando ele for adulto já não vai haver procissão e o BA onde
o pai nasceu será um deserto habitado por bares e restaurantes. O sonho dos
vereadores da CML é fazer do BA uma terra queimada, um deserto não
habitado, o esplendor do vazio. Estão quase a conseguir. O meu neto não
percebeu o sentido da música – é por todos nós que, triste, a marcha
chora um tempo, um lugar e um Bairro que está a morrer.
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 08:31

Sábado, 06.10.12

atalaia da barroca entre a ribeira viva e os caminhos mortos

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Vinte Linhas 830
Dissertação das casas mortas da Atalaia da Barroca
Atalaia da Barroca: nome antigo, fonte sem água, caminhos de silvas e pó.
Ao lado passa uma estrada do século XXI. São vinte metros de distância e
dois séculos de diferença entre o asfalto de hoje e os caminhos do século
XIX. Ao som da água contra as pedras da ribeira apenas os pássaros replicam
a melodia que nunca termina. Vejo a levada a desviar a água para uma azenha
que agora já não faz farinha e de onde roubaram a pedra da janela. Junto à
ribeira são cinco casas onde outrora houve vida, gente a nascer e a morrer,
guerra e paz, soldados e casamentos, fotografias em gavetas fechadas no
esquecimento. Mais acima são três casas brancas e só uma não perdeu o
telhado. Aqui dormiam animais, mulas e machos, bois de quarenta e oito
notas, galinhas e perus, patos e coelhos para os dias de festa. À direita a
casa do tio Portalegre que vinha de manhã e cuidava da horta durante o dia.
À noite voltava com o animal e a sua carroça para a casa na Atalaia do
Ruivo. Aqui houve uma adega; este é o tempo da vindima. As uvas são pretas
e estão ao lado das pedras na ribeira mas ninguém as vem colher. Davam um
vinho escuro, forte, com grau, capaz de dar vida a um morto. Ou quase. Os
figos também hoje ninguém os quer. Aqui houve rapazes (tio Manuel, tio
João, tio Nascimento) que subiam às figueiras à procura dos mais maduros.
Maria do Rosário, a irmã, ficava em casa junto da mãe. Aqui comia-se o que
a terra dava: couves e batatas, batatas e couves. Feijões secos ou
grão-de-bico. Ou favas, ervilhas, os mimos da horta. Pepino, tomate,
pimento, cebola, feijão-verde. Atalaia da Barroca, lugar onde respira o que
sobejou do primeiro paraíso, onde tudo era justo, suficiente, pleno e
circular. Entre sementeira e colheita, entre esforço e prémio, entre suor e
adiafa, entre luz e sombra, ser feliz era então aqui um ofício de todos os
dias.
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 20:25

Sábado, 06.10.12

outra leitura de 2007

04.jpg

«Máscaras de Salazar» de Fernando Dacosta

Entre Outubro de 1997 e Novembro de 2006 são já dez as edições deste
volume. Desde logo não é fácil definir este trabalho pois não é nem
jornalismo nem ensaio, nem biografia nem história, embora seja um pouco de
tudo isso. Na década de sessenta Fernando Dacosta começou a trabalhar na
Agência noticiosa «Europa Press» contactando para esse efeito a Assembleia
Nacional e a Presidência do Conselho.
Mais do que uma pessoa Salazar é um mito: «Uma das realizações mais
intrigantes que ele nos deixou foi a do seu mito. Personagem de ficção,
odiosa para uns, fascinante para outros, foi-a construindo, deixou-a
construir com vagar e habilidade ao longo de muitos anos, através de
encenações progressivas de sombras e luzes, excessos e despojamentos.» Mais
à frente, o autor afirma: «Ao concentrar todo o seu poder num homem só, o
Estado Novo condenou-se à sorte desse homem. Envelhecido, gasto, doente,
ultrapassado, Salazar sucumbe, arrastando consigo 42 anos de governo
absoluto. Tudo nele parece dúplice, contraditório, ao mesmo tempo sensível
e cínico, casto e pervertido, campónio e manhoso, piedoso e despótico,
ingénuo e perverso, medíocre e genial, íntegro e desgraçado.»
O grande interesse deste livro está no facto de o autor juntar neste volume
algumas visões dos dois lados da barricada política. Cada depoimento dos
oposicionistas acaba por ser assim uma nova máscara e será a soma das
diversas máscaras que dá origem à verdadeira dimensão do governante que
dominou tantos anos o país pela força da polícia, da censura, das prisões,
das torturas, do terror e da manipulação sistemática.
(Editora – Casa das Letras, Capa – Neusa Dias, Pesquisa –
António Brás)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 13:01

Terça-feira, 02.10.12

mais leituras de 2007

03.jpg

«As pequenas memórias» de José Saramago

O título deste livro, explica o autor, deve-se a nele surgirem - «as
memórias pequenas de quando fui pequeno». Mas começou por se chamar «O
livro das tentações». Não era nada fácil nos anos 20 do século XX a vida
dos pais do (ao tempo) pequeno José Saramago: a mãe doméstica e o pai
guarda da PSP, mais tarde o subchefe Sousa. Quartos, partes de casa e,
finalmente, casas, constituem-se no quase infindável roteiro: Rua E ao Alto
do Pina, Rua Sabino de Sousa, Rua Carrilho Videira por duas vezes, Rua dos
Cavaleiros, Rua Fernão Lopes, Rua Heróis de Quionga, Rua Padre Sena de
Freitas e, por fim, a Rua Carlos Ribeiro. Uma rua sem saída de onde José
Saramago viria a sair aos 22 anos para casar com Ilda Reis. Há neste livro
algumas memórias alegres e irónicas mas também amargas e infelizes. Como
por exemplo a morte do seu irmão Francisco: «A mãe e os filhos chegaram a
Lisboa na Primavera de 1924. Nesse mesmo ano, em Dezembro, morreu o
Francisco. Tinha quatro anos quando a broncopneumonia o levou. Foi
enterrado na véspera de Natal. Em rigor, em rigor, penso que as chamadas
falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que
consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança,
a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade
a que chamamos certeza. É falsa a única memória que guardo do Francisco?
Talvez o seja mas a verdade é que já levo oitenta e três anos tendo-a por
autêntica…Estamos numa cave da Rua E ao Alto do Pina. É o Verão,
talvez o Outono do ano em que o Francisco vai morrer. Neste momento é um
rapazinho alegre, sólido, perfeito.»
(Editora – Caminho, Colecção O Campo da Palavra)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 22:48

Terça-feira, 02.10.12

outra leitura de 2007

02.jpg

«Portugal Património» de Duarte Belo e Álvaro Duarte de Almeida

Este primeiro dos dez volumes de «Portugal Património» é uma obra monumental
cujo «avô» é, sem sombra de dúvida, o «Guia de Portugal» de Raul Proença e
Sant´Anna Dionísio, datado de 1924. Cada volume da série integra cerca de
500 páginas e surge como fruto de um trabalho de 8 anos com 300 mil quilómetros
percorridos para 600 mil fotografias e 22 mil horas de trabalho em 6 mil
páginas A4. Para os autores deste projecto a noção de património não integra
apenas os monumentos mas também as paisagens, as pontes, os estádios ou as
florestas. Este primeiro livro da série de dez revela três distritos (Viana do
Castelo, Braga e Porto) em 437 páginas que vão de Valença e Monção a Penafiel e
Marco de Canaveses. Os autores explicam assim o seu trabalho: «Este
guia-inventário pretende ser um contributo para um melhor conhecimento do
riquíssimo património que constituiu a rede de referências da nossa identidade.
Aqui se mostram com a mesma dignidade, sem hierarquizações, árvores, conventos,
trechos de paisagem natural, viadutos, palácios, barragens, cruzeiros, jardins,
fábricas, dólmenes, capelas de romaria, gruta, moinhos, igrejas, castros, etc.
Procurámos ainda, assumindo um critério pessoal de selecção, apresentar não só
aquelas unidades de importância tradicionalmente reconhecida mas também muitas
outras quase desconhecidas e, por isso, mais vulneráveis.» O trabalho foi
organizado fora da divisão administrativa clássica, partindo das cartas
cartográficas do Exército e trabalhando os autores em quadrados de vinte
quilómetros de lado.
(Editora – Círculo de Leitores, Consultores – José Mattoso, Paulo
Pereira, Teresa Belo)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 19:32

Terça-feira, 02.10.12

entre um inventário e uma antologia

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Fátima Murta – Quando o poema se confunde com a oração

Desde sempre os poetas tiveram a coragem de chamar todas as coisas pelos
seus nomes. Pois se a vida é tão breve e o amor tão incerto que outra
oposição podemos fazer à morte além da criação de poemas, pequenos
alicerces na grande casa da posteridade?
A posição do poeta é coincidente com a do crente. Ambos ajoelham em
silêncio e ambos levantam do chão a palavra cansada para ligar de novo dois
mundos separados pela distância, pelas sombras e pelo esquecimento.
Em «Consumatum Est» Fátima Murta afirma:
«Poderiam retirar-me tudo na vida menos a prece, a oração.»
A ligação entre a oração e o poema está no amor porque o amor é a única
resposta à morte mesmo quando («Viola Delta III») não sabemos, ao certo, o
que é o amor:
«Não sabemos o que é o amor mas, amor, amamos o que desconhecemos.»
E mesmo quando a morte tem a dimensão do espectáculo planetário transmitido
em directo (11 de Setembro) ou do Holocausto de 1939/1945, é sempre
possível cantar em poema «A última vítima de Auschwitz»:
«Apenas mais uma túlipa mais que seca a pele e o olhar. / Apenas mais uma
mulher que um dia sonhou com um jardim. / Apenas mais uma mulher. / Já nada
tem de seu.»
A única resposta ao sangue derramado dos timorenses é um poema a Santa
António de Lisboa em «Santa Cruz de Timor»:
«António, meu Santo António de Dili, de Baucau, de Bobonaro / Meu Coronel
Santo António alistado na milícia de Maria / Casa o Mar do Homem com o Mar
da Mulher / e fica à espera que a nova bandeira da paz entre os homens /
brilhe junto à gruta onde foi assassinado o primeiro filho de Timor!»
Mas o amor, tal como a poesia, não é fácil. Além de não saber o que é o
amor, o poeta procura muitas vezes um amor que não encontra. Como em «Coisa
talvez amada»:
«Queria colher a rosa mais linda de Maio
Mas tu estavas tão longe dela e de mim
Fui eu para longe de ti e levei a rosa (...)
Não cheguei a oferecer a rosa mais linda de Maio.
Colhia-a a meio da tarde e havias partido pela manhã.
Tão cedo se deixam as rosas entardecer.»
Federico Garcia Lorca foi morto mas venceu a morte e hoje o seu nome é
vivo; ninguém sabe o nome dos seus carrascos. Vejamos essa memória em «Com
perfume de limão»:
«Dorme Federico dorme
dorme com as estrelas nos olhos de prata
Meu menino de presépio nascido do céu
sobre as nebulosas onde a água chora.»
Agostinho da Silva, outro vencedor da morte, está presente nos textos de
Fátima Murta:
«Ser criança também é uma arte muito difícil. Nem todas as crianças
conseguem ser e permanecer crianças. Porque ser criança não é o mesmo que
ter poucos anos de idade.»
Tanto nos poemas como nos textos narrativos de Fátima Murta surge um
roteiro de fidelidade à ideia de não morrer. Em «Senhora do Carmo» do livro
«Palavra de Mãe», o poema é poema mas sem deixar de ser uma oração:
«Assim eu viva contigo sempre a meu lado, estrela
Assim eu morra mergulhada no teu firmamento
e quando a escuridão me seduzir ao afago dela
me ouças gritar: Mãe, fica só mais um momento!»
Se ficamos junto da mãe, da mãe do Céu, da mãe da vida, da mãe da alegria e
do amor, então será possível o poema matar a morte. Também na canção
«Senhora da Aparecida» há uma quadra que diz textualmente:
«Você me apareceu
Quando eu menos esperava
O mar unido ao céu
Ao meu redor gritava»
Se ficarmos junto da mãe, a oração que o poema também é, servira de ponte
entre dois mundos. O do precário e o do eterno; o das lágrimas e o da
alegria sem fim; o do efémero e o da posteridade. Dito de outra maneira: o
dos Homens e o de Deus.
Os poemas, as canções e os textos narrativos de Fátima Murta comungam,
praticam e proclama esta verdade tão antiga como o Mundo: «Só há uma medida
para o amor que é amar sem medida.»

José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 15:10

Segunda-feira, 01.10.12

uma leitura de 2007

01.jpg

Um livro por semana 01

O «Cemitério de pianos» de José Luís Peixoto

Nos Jogos Olímpicos de 1912 em Estocolmo o maratonista português Francisco
Lázaro morreu ao quilómetro trinta. Era carpinteiro numa oficina do Bairro
Alto e vivia em Benfica. A partir deste «drama em gente» José Luís Peixoto
organiza uma ficção na qual se permite algumas fugas ao verosímil. Por isso
há passeios em Monsanto, há a telefonia a tocar, há semáforos e há telefone
na casa do carpinteiro ou seja quatro coisas que não existiam em 1912. Mas
o que José Luís Peixoto alcança é uma ponte entre a realidade real de um
carpinteiro-atleta de 1912 e uma família dum certo tempo português. Uma
família onde os alcatruzes da vida colocam amor e morte em doses iguais,
onde se respira o verso dum folheto. O verso é o seguinte: «enquanto um de
nós estiver vivo seremos sempre cinco». Tal como num poema ou numa oração,
as palavras de José Luís Peixoto ligam de novo duas realidades que o tempo
separou. As páginas deste livro são um encantatório ponto de encontro entre
verdade e ficção. Mas sem equívocos. O narrador avisa: «O tempo, conforme
um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver
diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade com a
mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha
acontecido e com aquilo que contaram que me aconteceu. A minha memória não
é minha. A minha memória sou eu, distorcido pelo tempo e misturado comigo
próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento.» Este
«Cemitério de pianos» é a inesperada, fascinante e impressiva metáfora do
Tempo Português do século XX. E a prova de que a única resposta à morte só
pode ser o amor.
(Editora – Bertrand, Capa – Rochinha Diogo)
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 09:45

Segunda-feira, 01.10.12

o esplendor do efémero

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Algumas memórias de 2007
Em Novembro de 2006, depois de 18 anos de colaboração e perto de mil notas
de leitura publicadas, fui afastado da redacção do jornal «Sporting» e tive
que recomeçar tudo de novo. Como as coisas na Net ficam mais tempo desde
que num Blog ou Site, aqui espero juntar algumas dessas notas de
leitura.São de 2007 mas podem ser sempre lidas de novo a qualquer altura -
como agora.
José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 09:43

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