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Transporte Sentimental



Quarta-feira, 31.10.12

lisboa - 46 anos passaram num instante

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A cidade começava o dia devagar

Não fosse a espuma levantada pelo cacilheiro e eu não teria percebido o
início do movimento. Há mulheres que se demoram na luz do dia. Também a
cidade, nesse distante dia 9 de Setembro de 1966, me pareceu adormecida,
suspensa num sono de séculos, um sono marginado pelas colunas do cais e
pelo castelo de S. Jorge. Uma vedeta da marinha levava operários do Arsenal
do Alfeite e contornou uma fragata com cortiça vinda do Montijo. Já havia
ponte sobre o Tejo mas as galeras de Vendas Novas e de Pegões deixavam
ainda a sua carga no Cais dos Vapores da antiga Aldeia Galega. Deste lado
das colunas é a apoteose do silêncio: acabo de chegar a Lisboa para o meu
primeiro dia de trabalho e ainda não vi os eléctricos com bilhete de
operário. A Sé à direita e as ruínas do Carmo à esquerda são compassos de
oração numa cidade sem vida. Tenho 15 anos e nada sei do Mundo. Um avião
por cima do Jardim Botânico anuncia o movimento mas o resto da cidade dorme
o sono das muralhas. O Rossio ainda tem eléctricos mas agora só vejo
árvores e anúncios luminosos nos telhados. No Terreiro do Paço ninguém se
cruza com a estátua de D. José. Nem sequer um guarda-nocturno com as chaves
a tilintar. Tal como um poema, uma peça de teatro ou uma orquestra segundos
antes de uma sinfonia, o esplendor do silêncio da cidade espera-me. Caminho
até à Rua do Ouro, amanhã vou tirar medidas ao alfaiate, sei que vou ganhar
900 escudos por mês. Os telhados alinhados da Baixa parecem livros. Mais de
46 anos depois, estou fascinado como na primeira vez. A cidade começa o dia
devagar. Os prédios alinhados continuam a parecer livros nas prateleiras
dum alfarrabista. Hoje como em 1966. Lisboa – minha cidade, meu amor.

José do Carmo Francisco
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por José do Carmo Francisco às 13:18


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