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Transporte Sentimental



Quinta-feira, 25.10.12

afinal todos temos duas vidas

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«Minhas cartas nunca escritas» de Vergílio Alberto Vieira
Vergílio Alberto Vieira (n. 1950), autor de vasta obra (poesia, ficção,
teatro, diarística, literatura infanto-juvenil), surge nesta narrativa de
22 fragmentos com toda a sua bagagem de crítico literário –
actividade que exerceu desde 1975 na revista África e nos jornais Diário de
Lisboa, Jornal de Notícias e Expresso. Não por acaso o título do volume é
um verso de Mário de Sá-Carneiro e surgem citações de autores como António
Ramos Rosa, Luís de Camões, Camilo Pessanha, Álvaro de Campos, Bernardo
Soares e Ingborg Bachmann. E também Schöenberg. Embora as 22 referências de
cada texto sejam as cartas do Tarot, o discurso é, sem dúvida, de
autoficção - o que não significa autobiografia.
O ponto de partida é o lugar e o tempo da infância. Do casamento dos pais
(«Passava o Verão, o ardente estio, quando por fim, a 11 de Agosto de 1949,
meus pais casaram») ao seu tempo de criança: «Como não tinha irmãos e tanto
me entristecia estar assim o tempo só, passei a dar comigo, eu sei lá: fora
de mim, sentindo os pés presos à terra». A Guerra Colonial foi vivida em
Angola: «Tenho pouco mais de vinte e já muitos vi agarrados às tripas, a
correr em direcção a nada, enquanto iam disparando contra o esqueleto em
altura dos prédios» e é apenas mais outra doença, como a doença da página
104: «Agora, 3 de Novembro de 1989, ela era a criança desses dias, nas mãos
da equipa médica que removia o tumor na dorida garganta que a branca víbora
escolhera». Entre o chão de víboras da guerra e a víbora da doença.
O ponto de chegada é a noção de viagem de regresso de Lisboa a Braga: «Sou
aquele a quem hoje, entre Santa Apolónia e a Estação do Oriente ocorre que
nada vale adiar o instante em que ficámos sós».(…) «Adiante, já sobre
a ponte de ferro com que a noite enlouquece os maquinistas pelo Vale de
Santarém, o embaraço do velho com a lanterna junto à linha – Que
horas são?» Dentro do Alfa Pendular, surge a moral da história: «Bem sei
que, afinal, todos temos duas vidas – a que se esquece e a que nos
esquece».
(Editora: Papéis de Fumar, Capa: Adolf von Menzel, Prefácio: Ernesto
Rodrigues)
José do Carmo Francisco
--

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por José do Carmo Francisco às 23:27

Quinta-feira, 25.10.12

vi no teu olhar a febre da cidade

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Dissertação para a força dum olhar no écran da TV
Vi o teu olhar de relance numa notícia de televisão. Por três vezes se
projectou esse olhar solidário e vivo num discurso de luto e de infortúnio. As
prestações sociais sempre a diminuir e as diárias necessidades sempre a
aumentar. O teu olhar organiza o tempo e as suas quotidianas dificuldades tal
como no teu escritório os inventários e balanços arruma os factos patrimoniais
– suas facturas e seus recibos, seus contratos e seus talões de
depósitos.
O teu nome salta das páginas de um livro sagrado para as ruas da cidade. No
simbolismo que carrega com a sua pronúncia vejo no teu nome a força da
respigadora na colheita atrás dos ceifeiros nos campos da narrativa hebraica. O
teu nome é um nome belo que queria dizer «a amiga» no tempo em que o livro
sagrado foi escrito, algures depois do cativeiro da Babilónia. Hoje não há
respigadoras como nesse tempo nem há ceifeiros sequer pois esse trabalho é para
as máquinas nas planícies sem fim. Hoje não há campos nem servos nem bilhas de
água fresca na sombra das árvores mas o teu escritório pode ser a projecção
actual desse tempo de sementeira e colheita. Comida e trabalho. Pão torrado e
molho de vinagre. Feixes e paveias, cevada e trigo, eiras e vento que ajuda os
homens a joeirar.
Vi o teu olhar na febre da cidade onde os semáforos fazem a pontuação do
discurso quotidiano da velocidade. Fumavas um cigarro no usufruto dum prazer
efémero, inesperado e breve. Estavas à porta de um serviço público quase ao
lado de um discurso de tristeza sobre as prestações sociais. Era o teu tempo
organizado perante as confusões dos dias que correm na cidade. O tempo do fumo
do teu cigarro era veloz como a pressa dos automóveis nas ruas e avenidas.
Quase sempre um tumulto, uma corrida e uma ânsia para coisa nenhuma.
José do Carmo Francisco
--

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por José do Carmo Francisco às 14:01


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