Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Transporte Sentimental



Sábado, 06.10.12

atalaia da barroca entre a ribeira viva e os caminhos mortos

Image.jpg


Vinte Linhas 830
Dissertação das casas mortas da Atalaia da Barroca
Atalaia da Barroca: nome antigo, fonte sem água, caminhos de silvas e pó.
Ao lado passa uma estrada do século XXI. São vinte metros de distância e
dois séculos de diferença entre o asfalto de hoje e os caminhos do século
XIX. Ao som da água contra as pedras da ribeira apenas os pássaros replicam
a melodia que nunca termina. Vejo a levada a desviar a água para uma azenha
que agora já não faz farinha e de onde roubaram a pedra da janela. Junto à
ribeira são cinco casas onde outrora houve vida, gente a nascer e a morrer,
guerra e paz, soldados e casamentos, fotografias em gavetas fechadas no
esquecimento. Mais acima são três casas brancas e só uma não perdeu o
telhado. Aqui dormiam animais, mulas e machos, bois de quarenta e oito
notas, galinhas e perus, patos e coelhos para os dias de festa. À direita a
casa do tio Portalegre que vinha de manhã e cuidava da horta durante o dia.
À noite voltava com o animal e a sua carroça para a casa na Atalaia do
Ruivo. Aqui houve uma adega; este é o tempo da vindima. As uvas são pretas
e estão ao lado das pedras na ribeira mas ninguém as vem colher. Davam um
vinho escuro, forte, com grau, capaz de dar vida a um morto. Ou quase. Os
figos também hoje ninguém os quer. Aqui houve rapazes (tio Manuel, tio
João, tio Nascimento) que subiam às figueiras à procura dos mais maduros.
Maria do Rosário, a irmã, ficava em casa junto da mãe. Aqui comia-se o que
a terra dava: couves e batatas, batatas e couves. Feijões secos ou
grão-de-bico. Ou favas, ervilhas, os mimos da horta. Pepino, tomate,
pimento, cebola, feijão-verde. Atalaia da Barroca, lugar onde respira o que
sobejou do primeiro paraíso, onde tudo era justo, suficiente, pleno e
circular. Entre sementeira e colheita, entre esforço e prémio, entre suor e
adiafa, entre luz e sombra, ser feliz era então aqui um ofício de todos os
dias.
José do Carmo Francisco
--

Autoria e outros dados (tags, etc)

por José do Carmo Francisco às 20:25



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Outubro 2012

D S T Q Q S S
123456
78910111213
14151617181920
21222324252627
28293031