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Transporte Sentimental



Domingo, 31.07.16

«o meças» de j. rentes de carvalho

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O mais recente livro de ficção de J. Rentes de Carvalho (n. 1930) confirma o Prémio de Literatura Biográfica APE (2012) e o Grande Prémio da Crónica APE (2013) mas o autor reparte os «louros» da sua escrita deslumbrante com vários artistas: Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Luís Buñuel, John Steinbeck, Erskine Caldwell, Federico Fellini, John D. MacDonald, Elmore Leonard, Ettore Scola e Raymond Carver. O Meças é «António Roque. Antoninho em miúdo, o diminutivo mudou para «Antolinho» na primária. Passou a ser o «Meças», a alcunha tão entranhada que assinou António Meças quando foi para a Alemanha e teve de pagar a quem lhe emendasse a papelada.» O autor usa palavras na sua ficção mesmo sabendo que «as palavras nadam contam do mistério que ali e naquele momento sela nuns quantos destinos, nem das voltas que ambos irão dar, as versões sempre me mudança: a minha verdade, a tua mentira, aminha razão, o teu pecado, a tua sorte, a minha desgraça.» Entre o protagonista e as palavras surge uma geografia: «Serras. Despenhadeiros. Pedregulhos. Acolá um tufo de verde, além um riacho, caminhos onde há muito não passa alma, silvedos, vertentes, penedias que semelham muros de fortaleza. Um longe de terras de escasso pão e de inocência medieva, gente sem nome nem conta, a viver no que alguns chamam o antigamente, o primitivo de tempos idos». Entre o desejo perante a nora e a repulsa perante o filho, o «Meças» afirma: «Ó Bolotinha, um dia destes acordas com uma galhadura que nem pela porta de igreja entras!» O regresso a Portugal do emigrante («O emigrante perde sempre») acontece em dor: «Ontem as recordações chegaram acompanhadas dos cheiros: o de pólvora na roupa de meu Pai, do soro do leite nas mãos da Felisbela a fazer queijo, do sabão de potassa, das chouriças e defumar». A geografia do lugar de regresso é descrita sempre a rigor: «Comparado a outros lugarejos, a Quinta do Maçarico era quase um povoado, e entre pobres, menos pobres ,a do Cegonho, a do senhor Acácio e a nossa, seriam à roda de uma dúzia de casas, umas poucas juntando as paredes, as mais espalhadas ao azar das heranças, das desavenças e partilhas mal feitas. Rua não havia, só caminhos, as canelhas dos palheiros e um largo diminuto entre a nossa porta e a da Bexigosa.» A barragem (do Sabor) que aí vem trará riqueza («hotéis, lagos com grandes praias e ondas artificiais, discotecas, pista de esqui, parques, um jardim zoológico, lojas de luxo…») e é no meio desta riqueza prometida que o Meças mata o «senhor engenheiro»: «Afastara-se sem pressa, indiferente a se por acaso encontrasse alguém, porque lhe faria o mesmo, e caminhara até ao rio, atirando a navalha para onde a correnteza era maior». Um belo livro onde o geral se mistura de modo sábio com o pessoal, o público com o privado, o exterior com o íntimo. (Editora: Quetzal, Revisão: Carlos Pinheiro, Capa: Rui Rodrigues, Foto: Getty Images) --

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por José do Carmo Francisco às 18:26

Quarta-feira, 20.07.16

«de poema em riste» de josé carlos de vasconcelos

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Autor de dez livros de poemas, um de entrevistas, três de literatura infanto-juvenil e um sobre Liberdade de Imprensa, José Carlos de Vasconcelos (n.1940) vê em 2016 republicado um seu livro de 1970: o hoje já «histórico» volume «De poema em riste». Em vez de livrarias, galerias ou salões, estes poemas eram lidos em sociedades de recreio, fábricas, filarmónicas e associações juvenis ou de estudantes pois como refere o autor no texto de 1970 «eu gostaria de ser um jogral». O ponto de partida é um lugar específico, o Portugal de 1970: «Aqui onde respiro / o poema não pode ser rouxinol / quando as sílabas são sitiadas / e as almas são cercadas». Nesse lugar específico existe e persiste uma ditadura, a do poema «A dita dura»: «A dita mói / a dita rói / a dita dói / E contra a dita / um povo grita / Mas a dita dita / sempre a sua razão / sua palavra é escrita / a do povo não». E a guerra: «Há crianças que choram no cais / Há mulheres que choram no cais / Há homens que choram no cais /Oh minha pátria que nunca mais». E os bairros de lata: «Aqui quem se mata / não é de tiro ou de faca / mas de febre ou de fome / - bairro de lata / E não tem anúncio ou notícia / não tem flores nem latim / quem aqui morre / - bairro de lata». No meio da revolta a guitarra de Carlos Paredes faz-se ouvir: «Guitarra laranja azul / metal fresco guitarra / não chores canta / sem que nada simule / tudo o que há para cantar». Trata-se pois de «uma poesia do povo e para o povo» como se refere na página 64: «Somos todos todos iguais / ricos e pobre pretos e brancos / só que uns calçam sapatos / e outros calçam tamancos / Somos todos todos iguais /só que há uns mais iguais / do que outros / Sape sape lagartos / torpes tipos tortos / venerandos mortos / estamos fartos estamos fartos». (Editora: Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Desenho: Tóssan, Capa/Coordenação: Augusto Baptista, Foto: Gonçalo Rosa da Silva) --

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por José do Carmo Francisco às 21:10

Terça-feira, 19.07.16

dissertação para a voz de rute na manhã daquele dia

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A voz de Rute é o som da memória de algumas palavras soltas na mesa do café na manhã daquele dia. Na pressa do encontro o que outros poderão chamar de timbre e altura, entoação e acento articulatório chamo eu, na crónica que é um quase poema, a origem corporal, orgânica e física porque a voz de Rute traz ao meu espírito a memória de uma gramática de som organizada num tempo especial, sem ódio nem amor, sem saudade nem desejo. Um tempo em que tudo era possível porque tudo estava à distância de uma voz convocando a alegria sem dimensão nem volume. De repente a voz fica na mesa do café como resgate de uma despedida inesperada e a mulher-menina surge a sorrir no atrelado de um eléctrico amarelo, volta a ser Verão na cidade e as meninas envergam de novo vestidos leves. Há nos passeios das ruas um perfume que parece alfazema e uma luz teimosa que permanece até hoje intacta dentro do som da voz. Na voz de Rute há um rio incansável, antigo e feliz por repetir o seu eterno ciclo da água entre o branco das nuvens e o azul do mar. Tudo na potência da voz de Rute vai apaziguar todos os conflitos, todas as dúvidas e todas as hesitações da felicidade quotidiana. Tal como num moinho de maré há, na voz de Rute, o relógio capaz de abrir o tempo dos três mundos – animal, vegetal e mineral. Quando se abrem as comportas desse moinho as palavras inundam o silêncio e tudo volta ao usufruto de plenitude da água. Porque é de água que se trata nesta voz que convoca sementeiras e colheitas, alegria e abundância, celeiros e adegas onde o tempo parou numa etapa feliz do calendário do ano. E onde todos os anos a voz repete a invocação desse moinho que parece estar ali desde sempre. --

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por José do Carmo Francisco às 19:40

Sábado, 16.07.16

«os meus misteriosos pais» de josé viale moutinho

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José Viale Moutinho (n. 1945) assina neste seu 13º título para o público jovem uma revistação ao passado de Portugal, ao chamado «tempo da outra senhora». O ponto de partida é a memória de um jovem clandestino: «Chamo-me Álvaro, Carlos, mas já me chamei Alberto, Augusto e António.» É pelo olhar desse menino que se organiza a memória da vida antes do «25 de Abril». Por exemplo os bufos: «O professor Pascoal tomava a devida nota e depois a faria seguir para a PIDE. Chama-se a essa gente que, sem ser da polícia, espiava as pessoas, as denunciava ou levantava suspeitas, os «bufos», ou seja os informadores». Surge também a Guerra Colonial («Adeus, até ao meu regresso») e a Censura: «Até uma entrevista que o Marcelo Caetano deu a um jornal brasileiro, «O Globo», foi proibida de ser transcrita nos jornais portugueses. O censor justificou que a entrevista era para os brasileiros e não para os portugueses!» Um dos pormenores mais curiosos do livro tem a ver com a inclusão de poemas na narrativa. Por exemplo o célebre poema de Luís Veiga Leitão a uma bicicleta na cela que começa assim: «Nesta parede que me veste / da cabeça aos pés, inteira / bem-hajas, companheira / as viagens que me deste.»E o poema de Fernando Pessoa sobre a figura de Salazar: «Este senhor Salazar / É feito de sal a azar / Se um dia chove / A água dissolve / O sal / E sob o céu / Fica só o azar, é natural. / Oh, c ´os diabos! / Parece que já choveu…» Algumas gralhas surgem na página 50 (visto por viste), na 38 (trolha por pedreiro), na 69 Bento Gonçalves referido como secretário em vez de secretário-geral do PCP de 1929 a 1942 e na 68 refere-se Sal em vez de Santiago como a ilha onde fica o Tarrafal. (Editora: Lápis de memórias, Design: Bruno Inácio, Capa: José Dias Coelho) --

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por José do Carmo Francisco às 13:00

Sexta-feira, 15.07.16

«o amor em lobito bay» de lídia jorge

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Depois de «A instrumentalina» (1992), «Marido e outros contos» (1997), «O belo adormecido» (2004), «Praça de Londres» (2008) e «O organista» (2014), Lídia Jorge volta ao conto com «O amor em Lobito Bay» (2016). O conto integra a síntese do poema e o torrencial de narrativa, é um ponto de equilíbrio entre a brevidade e a abundância, entre o curto e o extenso. No conto que dá título ao livro o ponto de partida é a casa: «A nossa casa em Lobito Bay estava coberta por telhas de barro.» Nesse paraíso perdido nasce um rumor «aquele que comesse o coração de uma andorinha apanhada em pleno voo, tornar-se-ia o maior corredor do mundo». Mas em vez da andorinha são homens que morrem: «Os carros levavam consigo, voando junto às espingardas, as insígnias do MPLA. Agora era a festa daqueles que traziam as insígnias da FNLA. Os tiros soavam sem cessar à nossa volta.» O narrador deste conto conclui: «Só onde não há amor não há culpa». Os restantes contos deste livro são «Overbooking», «O tempo do esplendor», «Imitação do êxodo», «Passagem para Marion», «Um rio chamado mulher», «Novo mundo», «Dama polaca voando em limusine preta» e «O poeta inglês». Apenas duas notas: como a literatura é uma homenagem à literatura, algumas das páginas do livro apontam homenagens a Hemingway, Faulkner, Mark Twain e Tenesse Williams. Noutra se depara com uma definição de poesia: «Os poemas dele não eram só dele, eram a nossa matéria, a matéria que eleva os homens acima dos caminhos trilhados pelos seus sapatos e por ela trocamos tudo, honra, dinheiro, felicidade, essa aposta que fazemos em coisas cegas, por sabermos que existe uma essência que as fabrica para além de nós. Alguma coisa de poderoso, de mensageiro em nós.» Trata-se, por fim e para abreviar, de um livro de contos a não perder. (Editora: Dom Quixote, Revisão: Clara Boléo, Edição: Cecília Andrade, Capa: Maria Manuel Lacerda, Foto: João Pedro Marnoto) --

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por José do Carmo Francisco às 19:11

Quinta-feira, 14.07.16

dissertação para o olhar de rute entre a terra e o mar

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Há no olhar de Rute, ao mesmo tempo, a secura da terra e a humidade do mar. Mesmo macerado de cansaço por uma noite intensa de trabalho, o olhar de Rute convoca uma alegria renovada na varanda da manhã. Na mesa do café, os objectos são separados na importância relativa da sua utilidade prática: as chaves de casa, os cigarros, a carteira, a chave de ignição do automóvel. Este é o lado da terra no olhar de Rute. A mulher-menina. Mas logo falamos da filha adolescente de Rute e tudo se modifica com uma barragem de ternura em cada palavra sincopada no discurso sobre a filha, uma menina-mulher. Este é o lado do mar no olhar de Rute. A mulher-menina. Aqui na história de Rute em 2016 só alguns pormenores são iguais à história da Bíblia. Desde logo a definição do nome em hebreu pois Rute significa «amiga» e «vizinha». Por metáfora virá a significar «acumulada de bens». De facto, no Livro de Rute, a moabita é uma viúva muito bela que se coloca atrás dos ceifeiros das searas de Boos para respigar algum trigo em grão que depois será moído e feito em farinha que dará o seu pão de cada dia. A história diz que Boos se apaixonou por Rute e, da união entre os dois, nasceu Obed que viria a ser o avô do rei David. Tirando a comparação possível entre a figura da antiga respigadora nas páginas da Bíblia e a da actual Técnica Oficial de Contas, pouco mais se pode alinhar dos livros sagrados para o quotidiano de 2016. Há e continua a haver, no olhar de Rute, uma mistura feliz entre o seco da terra e o húmido do mar, um intervalo de luz no cinzento quotidiano, um tempo de alegria que parte de poucos em poucos minutos nos comboios a caminho de Lisboa e de Cascais, rigorosamente vigiados pelos fantasmas da Fundição de Oeiras. (foto de José Cruz) --

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por José do Carmo Francisco às 21:47

Terça-feira, 12.07.16

josé travassos, cr7 e joão moutinho ou as emboscadas do esquecimento

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Na minha mais recente crónica publicada neste Blog («Cristiano Ronaldo e a legião de amigos sempre a seu lado») ao lado de uma foto da D. Isabel Trigo de Mira aconteceu um problema que tem muito a ver com o título do meu outro Blog – as emboscadas do esquecimento. De facto não referi o João Moutinho mas apenas porque na azáfama da escrita da crónica não recorri a apoios de nenhuma espécie. Foi o que se chama um trabalho sem rede. Ora o João Moutinho faz parte da melhor equipa de Iniciados que eu vi jogar entre 1988 e 2006 no Sporting Clube de Portugal. Recordo por exemplo André Vilar, Miguel Veloso, Carlos Saleiro, além dos treinadores Rui Palhares e Paulo Cardoso. A época deve ter sido 2000/2001 e a foto que escolhi para acompanhar esta crónica mostra alguns jogadores ao lado de José Travassos e de Cristiano Ronaldo. Aqueles miúdos não chegaram a ser estrelas mas sentavam-se no banco cedido pelo coronel Cunha Bispo no relvado nº 2 de Alvalade. Simbolizam todos os miúdos que entram na fábrica dos sonhos mas de onde saem demasiado depressa. Por exemplo o Emanuel que jogou muitas vezes ao lado do Miguel Veloso, nunca mais soube nada dele. É um exemplo. O João Moutinho tem um jogo em Peniche debaixo de chuva; foi uma autêntica, completa e fabulosa serenata à chuva. Só para falar desse jogo magnífico em Peniche não chegavam as folhas do bloco. Nunca o esquecerei, foi um jogo incrível em que a chuva parecia mesmo o céu a aplaudir. O Sporting Clube de Portugal tinha de longe a melhor equipa de Iniciados mas as toupeiras do futebol português tudo fizeram para que nesse ano não houvesse campeonato até ao fim. Foi uma injustiça miserável mas o futebol, como a vida, é feito de jogo-sujo, intrigas e sangue pisado. Esta vitória em Paris foi também obtida contra esse lado negro do futebol. --

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por José do Carmo Francisco às 09:42

Segunda-feira, 11.07.16

cristiano ronaldo e a legião de amigos sempre a seu lado

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Quando vi Cristiano Ronaldo sair do campo em lágrimas, vítima de uma entrada violenta de um francês, temi o pior mas, como numa tragédia-comédia, acabou por ser Éder, o patinho feio, o mal-amado, a resgatar a amargura da exclusão e a marcar o golo da vitória. Começo esta crónica sem ter a certeza de ter «on line» a foto de Isabel Trigo de Mira mas é o seu nome que me surge ao lado de Aurélio Pereira, Osvaldo Silva, Paulo Cardoso, Leonel Pontes, Carlos Pereira, Luís Martins, João Couto, todos os treinadores, António Atanásio, Rui Vide, Manuel Ferrão, Juca, todos os delegados e também o Dr. Marques de Freitas e o senhor Fernão, padrinho do Cristiano, na Madeira. Tenho histórias com outros jogadores. Lembro-me do Rui Patrício com 12 anos de idade ao lado do Ruben Gravata, a sorte grande e a aproximação. Lembro-me do Ricardo Quaresma a chorar no meu ombro porque o Paulo Leitão lhe deu a camisola 16 em vez da 10 num jogo com o Cultural da Pontinha no relvado nº 3. Ele tinha ficado a tomar conta da irmãzinha com os pais na venda. Lembro-me do Nani, ainda Luís Carlos Cunha, quando pouca gente no Sporting acreditava no seu valor mas João Couto acreditava e valeu a pena. Lembro-me do Cedric Soares referir Barroca de Alva como lugar do nascimento da avó, da mãe e de si mesmo como jogador. Lembro o pai do Adrien a falar francês. Lembro-me do Zé Fonte ao lado do Miguel Ângelo, eficiente e a dar tudo pela equipa. Outros jogadores como João Mário ou William Carvalho já são, para mim, memórias em segunda mão pois não são tão vivas como as outras. Do Cristiano Ronaldo lembro uma história curiosa quando me interpelou sobre uma frase nas páginas do jornal Sporting. Era «um infantil pouco infantil». A resposta veio ontem dia 10 de Julho em Paris. Aquele infantil nunca foi infantil em nada. --

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por José do Carmo Francisco às 10:41

Domingo, 10.07.16

clara macedo cabral - raposas, tavira e o convento dos cardais

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Começo pelo princípio: a ilustração pertence a Paul Barkshire (n.1953) e ao seu livro «Unexplored London» (Lennard Publishing) sendo a fotografia datada de 27-2-85. Clara Macedo Cabral (n.1969) é autora do livro «Há raposas no parque» (Editora Quidnovi) e escreve na Revista Ler as suas cartas de Londres. O ponto de partida do seu livro é um lugar («O café Euphorium é uma amostra daquilo que Londres tem de melhor, ser o centro do mundo») e um tempo: «Foi há dois anos que mudei a minha vida para Londres. Dizem que só a partir do sétimo ano de permanência neste país se deixam de riscar os anos no calendário, se perde a contagem dos anos.» Noutro ponto do livro há um olhar sobre o povo britânico: «acredito que a grandeza deste povo se deve à insularidade, ao mar, aos almirantes (Nelson, Blake, Drake, Hawke, Duncan, Raleigh), a corsários e piratas, à participação activa em duas Guerras Mundiais, à reconstrução de um país dos escombros, à torrencialidade, ao «fog» destas ilhas, numa palavra, dificuldades que já cá não estão, rijeza que afrouxou.» Mais à frente uma memória de Tavira no tempo das férias: «Resta-me o consolo das noites de Tavira, em manga e vestidos curtos. Tudo isto arrumo no armário à espera do Verão do próximo ano. Sim, é bom viver em Londres. Mas tão bom quanto isso é não ser de Londres ou ter como lhe escapar. Para sítios de um país periférico e pobre, mas também cheio de histórias e de passado, alimento de pretensões que nos fazem sorrir quando vivemos fora.»

Noutro registo o Convento dos Cardais onde um grupo de raparigas («Não têm ninguém no mundo») são tratadas (a crónica é de 2008) pela irmã Augusta e pela irmã Ana Maria: «O mistério dos Cardais é o mistério da transformação. O trabalho que as irmãs fazem pelas raparigas e o modo como estas se entreajudam, elevam as duas partes a uma dignidade que desafia o entendimento e o comportamento comuns.» Ficam estas breves notas de uma leitura plena, completa e feliz, num livro que, mais uma vez, descobri num alfarrabista de Lisboa. Também eu gosto de ir a Tavira ou de visitar o Convento dos Cardais de onde saio sempre mais ricos em emoções do que quando entro. Sem esquecer as raposas no parque de Blackheath, ali entre Lewisham e Greenwich. --

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por José do Carmo Francisco às 18:55

Domingo, 10.07.16

pisagem e povoamento num quadro de cesare novi

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Em Portugal, no Baixo Alentejo, há três rios (Sado, Mira e Guadiana) que cortam a monotonia da paisagem e do seu povoamento. A massa líquida desses três rios transporta humidade em contraponto com a seca e o calor da terra. O que no quadro de Cesare Novi é organizado em sementeira de alfazema, surge no Baixo Alentejo, perto dos rios, como uma espécie dita espontânea a quem os técnicos dão o nome de «alfazema de folha recortada». Utilizado nas indústrias de saboaria e de perfumes como «essência de lavanda», o seu óleo é mais que importante para essas indústrias porque é essencial. Ao centro do quadro de Cesare Novi uma casa com a sua gramática de sonhos e de gente activa que não se vê mas se pressente, que não se ouve mas existe, que não tem figura definida mas está presente. Há na sementeira de alfazema uma promessa de abundância. Há na casa um reduto contra a noite, a chuva e o vento. O que Cesare Novi nos propõe é uma elegia feliz de um tempo onde cada minuto se deixa usufruir na sua plenitude de sessenta segundos completos e cheios. No intervalo das tarefas, o espaço da contemplação. Todas as manhãs o Mundo acorda com notícias de morte, bombas em mesquitas, naufrágios em barcos de borracha, assassínios com armas de fogo de toda a espécie, crimes servidos à mesa do café com todos os pormenores da tristeza. O que este quadro de Cesare Novi revela e desenha é um outro tempo, um tempo de espera da sementeira para a colheita, um tempo em que a Terra multiplica a alegria da alfazema ao contrário das notícias que instalam o luto nas pequenas mesas do café da manhã. --

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por José do Carmo Francisco às 09:24

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