Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Transporte Sentimental



Sábado, 02.05.15

sobre foto de alfredo cunha - «perdi um sapato, outros perderam a vida»

Image.jpg

O meu amigo Levi Condinho (n. 1941, Bárrio) tem o excelente hábito de escrever um diário. E digo excelente porque só assim se percebe a temperatura sentimental dos dias que passam no tempo que fica. As fotocópias do seu diário no dia 25 de Abril de 1974 mostram-me o que eu não vi porque estava na Pontinha, era um dos 93 furriéis do Regimento de Engenharia. Estive a trabalhar na minha área de acção (Administração Militar) procurando proporcionar alguns alimentos e bebidas ao pessoal da Figueira da Foz, os da Artilharia Pesada nº 4. Voltando ao diário do Levi Condinho sobre o que se passou na Rua António Maria Cardoso, leio: «Manifestação frente à PIDE. Soam as metralhadoras sobre nós, fuga precipitada, perdi um sapato, outros perderam a vida. Agarrei ainda as pernas de um operário cujo nome não consegui fixar para o levarmos para um carro. Estava morto. Encontraram para mim um sapato de rapariga de pé direito para calçar no esquerdo. Desci assim até ao Rossio. Nova manifestação desde as Escadinhas do Duque, pelo Rossio, Martim Moniz e Almirante Reis. No Intendente um grupo de polícias da P.S.P. disparou revólveres e atingiu um moço mesmo ao meu lado. Poderia ter sido eu. Encontrara entretanto o Zé Galamba. Após termos acompanhado o ferido para o Hospital, dispersámos e voltei de táxi para casa.» Mais à frente regista a passagem de uma manifestação do MRPP da qual saiu no Saldanha por já «não ter força nas pernas, na garganta e nos pulmões». E anota: «Começo a discordar do divisionismo que o MRPP está a provocar, expondo-se ao ridículo, embora teoricamente seja o grupo com uma linha ideológica mais revolucionária e mais correcta.» Fim de citação porque hoje é tudo diferente; esse mesmo partido nos «outdoors» quer o regresso do escudo e do tostão. --

Autoria e outros dados (tags, etc)

por José do Carmo Francisco às 18:07

Sábado, 02.05.15

«o búzio de istambul» de joão rasteiro

Image.jpg

«Natureza e Cultura» – esta dupla inscrição pode ser uma das chaves para entrar neste livro de João Rasteiro (n.1965). O título está na página 63: «O binómio de Newton, dos silêncios que sufocam o tempo, das palavras de sangue cintilante, do poema de vida e morte, o binómio das aldeias ininterruptas é tão sublime e majestoso como a rosa, como o martírio do búzio de Istambul». Trata-se aqui de um mundo uno. É o poema que une as coisas mais diversas e opostas, sejam as águas em tumulto do Bósforo ou as águas calmas do Mondego: «Toda a memória é uma forma de solidão, a respiração, a margem das palavras. O eco.» Dito de outra maneira: «o poema atravessando dois mundos de ecos intangíveis / a força consagrada dos búzios florindo a sua órbita viva / advindo nos hortos perfumados dos jardins de Istambul». Se «Natureza e Cultura» pode ser a primeira inscrição do livro, a segunda será «Amor e Morte»: «quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, porque o amor é forte como a morte, mais forte que a eternidade dos mortos – te procurava na pureza do linho e das mortalhas sagradas, pai». Voltando à dualidade «Natureza e Cultura», depois da homenagem a Camões («Junto às margens impassíveis dos rios da Babilónia / os salgueiros têm fólio espinhos hábeis de silêncios») o autor regressa à Natureza: «Agora que todo o campo, todos os animais, todas as aves, toda a terra, todos os amieiros me pertencem, regresso até ao fim do mundo» Mas já tinha viajado pela Cultura na primeira parte do livro. A sua biografia («ser bardo e sonhador é devorar o fogo sagrado, o correr das chuvas») envolve leituras de poetas como Camões, Fernando Pessoa, Fiama, Luiza Neto Jorge, Gastão Cruz, Ramos Rosa, Jorge de Sena, Miguel Torga, Eugénio de Andrade ou Mário Cesariny: «Deixa que chegue a ti o que não tem nome: o que é o fogo. / Tocaste a luz, a quietude da luz e inventaste a blasfémia / a respiração / retrocedeste em círculos / desceste ao pântano das madrugadas que se acolhem largadas sob as chuvas» O búzio de Istambul ouve-se à beira do Mondego, entre Coimbra e a Figueira da Foz. O mundo é uno: o poema junta de novo o que a geografia separou. (Editora: Palimage, Prefácio: Casimiro de Brito, Capa: Rogério Oliveira) --

Autoria e outros dados (tags, etc)

por José do Carmo Francisco às 10:57


Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Maio 2015

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930
31